Concordar sob coerção não é consentimento: como o Estado contribui para nos subjugar às Big Tech

imagem: Cytonn Photography / Unsplash

Há muitos anos as pessoas têm sido condicionadas a marcar a caixa ou clicar o botão, sem ler, afirmando que concordam com os “termos de serviço” e “política de privacidade” de todo serviço online que deseje utilizar, sem refletir por um segundo sequer nas suas consequências. O diabo está nos detalhes pois, muitas vezes, nas letrinhas miúdas escondem-se práticas de uso de dados pessoais, as quais se fossem lidas, a pessoa provavelmente não concordaria. Como, por exemplo, o compartilhamento de dados pessoais com parceiros, para fins de marketing e outros fins não especificados.

Muitas vezes a pessoa não tem a opção de não concordar, por diversos motivos. Por exemplo, por pressão social, considerando que todo o seu círculo social usa o mesmo aplicativo de mensagens ou rede social. Ou mesmo porque as empresas com as quais a pessoa precisa se relacionar só usam um determinado aplicativo de mensagens, sem o qual a relação de consumo torna-se impossível. Nesses casos, a pessoa pode tentar procurar um concorrente que utilize um aplicativo diferente, mas nem sempre isso é possível, pois na maioria das vezes todas as empresas usam o mesmo aplicativo, sempre das poucas empresas chamadas “Big Tech” que detêm um monopólio ou um oligopólio do setor.

No caso do Brasil, por exemplo, estabeleceu-se um monopólio de facto do WhatsApp, especialmente desde que a empresa Meta, dona do aplicativo, começou a pagar as operadora de internet móvel pelo privilégio de excluir somente os seus aplicativos da franquia da internet móvel, em detrimento dos demais. No Brasil, os planos de internet móvel possuem limitações de volume de tráfego de dados. Se a pessoa usar qualquer outro aplicativo de mensagens, como o Signal ou Element, vai logo gastar o seu limite. Por outro lado, se usar o WhatsApp, não gasta nada. É o chamado zero-rating. É exatamente esse desequilíbrio de mercado que levou à dominância desse aplicativo no Brasil, onde quase 100% das pessoas usam e cria-se uma expectativa social e comercial de que todo mundo precisa usá-lo.

Essa distorção de mercado chegou a ser avaliada entre 2015 e 2018 pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, órgão governamental que tem por objetivo a defesa da concorrência, que decidiu arquivar o caso após manifestação da Anatel, com argumentação contrária a qualquer lógica, de que a isenção de franquia ampliaria a concorrência e estimularia a inovação. Dez anos depois, sabemos bem qual foi o resultado. Entretanto, essa é uma história que contarei em detalhes em outro texto. Na ocasião, mostrarei quem foram as partes envolvidas, os argumentos e previsões que elas fizeram e o contraste com o que de fato ocorreu nos anos subsequentes. Uma parte da história já contei ao Prof. Sérgio Amadeu no episódio 92 do podcast Tecnopolítica. É fato indiscutível que, nesses anos, ampliaram-se sobremaneira as situações que nos obrigam, contra a nossa vontade, a aceitar o que quer que as “Big Tech” desejem nos impor.

Imagem de celular sobre a mesa com aplicativo aberto.

Aplicativos que não são subsidiados pelo oligopólio gastam a franquia de internet. Imagem: Lana Codes / Unsplash

O pior tipo de armadilha, no entanto, é quando o próprio Estado estabelece obrigações, ou impõe condições para o recebimento de direitos, a não ser que o cidadão utilize determinado aplicativo ou rede social das “Big Tech”. Hoje vivemos a trágica situação em que todos os aplicativos governamentais são de código fechado, isto é, não se pode inspecionar o código fonte para verificar o que de fato estão fazendo e que dados estão coletando no seu dispositivo. Carteira de Identidade Nacional – CIN, Carteira Digital de Trânsito – CDT (anteriormente chamada de CNH Digital) e o e-Título são apenas alguns dos exemplos de aplicativos governamentais, produzidos usando recursos públicos do erário, mas cujo código fonte não é acessível ao público que pagou por eles. Para saber mais sobre por que o público deveria ter direito de acesso e uso ao código fonte do software pelo qual pagou, conheça a campanha Public Money, Public Code da Free Software Foundation Europe – FSFE. Em contraste com o Brasil, muitos aplicativos governamentais em países da União Europeia, como a Alemanha, são de código aberto.

A falta de acesso ao código fonte não é o único problema desses aplicativos governamentais. Talvez seja ainda mais grave o fato desses aplicativos só serem disponibilizados nas lojas proprietárias da Google e da Apple. Além da questão da coleta de dados de todos os cidadãos brasileiros por essas empresas estrangeiras, o que é grave, há ainda problemas de ordem jurídica e um problema de ordem democrática. Legalmente, não se pode estabelecer um contrato sob coerção ou ameaça. Tal contrato não tem validade jurídica. Além disso, o fato de que o cidadão não pode opinar ou influenciar sobre os termos de serviço e políticas de privacidade se torna um problema de ordem democrática quando todos passam ser obrigados pelo Estado a aceitá-los.

O que o Estado está fazendo, com essa prática, é privatizar a lei em um processo antidemocrático. O cidadão tem que obedecer e não tem nenhuma participação na definição do texto que supostamente é obrigado a obedecer. Quem determina o que aparece nesses termos de serviço e políticas de privacidade são exclusivamente a própria Alphabet, dona da Google, e a Apple. O que elas escrevem tem força de lei e não há nada que o cidadão possa fazer, uma vez que o Estado condiciona o cumprimento de deveres e o acesso a direitos à aceitação desses termos. É uma tirania das Big Tech, com o aval dos governos de países que adotam a prática de estabelecerem aplicativos de código fechado em lojas proprietárias de oligopólios estrangeiros como único meio de exercer a cidadania.

Em outros tempos, a tirania levaria à revolta popular contra o tirano. No caso presente, isso não ocorre, em grande parte, porque as pessoas foram condicionadas durante anos por essas empresas do oligopólio do Vale do Silício, a aceitar sem ler e nem prestar atenção às obrigações e permissões “assentidas” nos termos de serviço. Com isso, conseguiram criar um sentimento de resignação, em que as pessoas acham que tudo está muito ruim, mas acreditarem não há nada que se possa fazer.

Foto de graffiti representando a resistência por meio de punhos cerrados e braços levantados.

Imagem: Jon Tyson / Unsplash

Isso não é verdade. Há muito, sim que podemos fazer. Não é fácil, mas há diversas atitudes que podemos tomar. Para começar, cobrar dos políticos e votar naqueles que se comprometam com políticas públicas que fomentem a criação da infraestrutura digital nacional. Por exemplo, que defendam a ideia de que se o software é desenvolvido com recursos públicos, ele pertence ao público e deve ter o código livre, como defendido pela campanha Public Money, Public Code da FSFE. Cobrar também que valorizem a proteção dos dados pessoais e a soberania digital, fomentando o desenvolvimento de uma infraestrutura digital nacional, tanto em termos de hardware (nuvem soberana), quanto em termos de software.

Além disso, é necessário desenvolver e reter os talentos formados na universidades brasileiras, para que os profissionais de tecnologia permaneçam no Brasil, em vez de irem trabalhar em empresas estrangeiras, e para que o país tenha o domínio sobre a tecnologia. Para isso, é necessário que as universidades possuam financiamento adequado para pesquisa e ensino na área de tecnologia, no sentido contrário dos cortes que foram feitos nos últimos anos em nome do ajuste fiscal. Criar incentivos fiscais para que empresas brasileiras do setor se desenvolvam, compensando o efeito fiscal com maiores impostos para as empresas estrangeiras que enxergam o país como colônias digitais para a extração de dados.

Por outro lado, além das questões relacionadas a políticas públicas, podemos também tomar diversas atitudes no âmbito pessoal. Usar lojas de aplicativos livres, como a F-Droid nos dispositivos móveis baseados em Android. Remover os aplicativos proprietários e que coletam seus dados, inclusive os que já vêm instalados no sistema desde a fábrica – os chamados “bloatware”. Existem guias e tutoriais na internet que demonstram passo a passo como fazer isso. O fórum xdaforums.com costuma ter guias personalizados para cada modelo de dispositivo móvel.

Foto de braço com luva segurando produto de limpeza.

Imagem: JESHOOTS.COM / Unsplash

Toda vez que for se cadastrar em um novo serviço, avalie cuidadosamente quais dados pessoais estão sendo pedidos. Eu, como todo mundo, não tenho tempo para ler em mínimos detalhes todos os termos de serviço de todas as plataformas, sites, serviços e aplicativos que preciso usar. Por isso, é importante pesquisar nome do serviço, plataforma ou aplicativo no ToS;DR, ver qual é a sua nota de privacidade e os principais pontos negativos (ou positivos) do resumo dos seus termos de serviço. Para entender o que é e como usar a ferramenta, leia o texto que escrevi sobre o assunto.

No âmbito social e nas relações comerciais, preferir sempre os aplicativos livres para troca de mensagens, navegação com mapas e outras necessidades do dia a dia. Apresentar às pessoas que conhece os aplicativos e soluções utilizadas, para que vejam que não só elas reduzem a nossa exposição de dados pessoais e submissão às empresas do oligopólio estrangeiro das “Big Tech”. Tão importante quanto isso é mostrar que essas soluções também são viáveis, convenientes e fáceis de usar no dia a dia.