Derrubar o Artigo 19 do Marco Civil Ameaçaria Pequenas Comunidades Digitais e Reforçaria o Monopólio das Big Techs
O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará nos próximos dias a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, um tema que tem gerado intensos debates na sociedade. Tratam-se de 4 processos que questionam a validade da norma, entre eles uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
O que diz a lei?
O artigo 19 do Marco Civil da Internet estabelece que:
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
O problema da moderação de conteúdo
O artigo 19 tem sido questionado ultimamente na sociedade diante da insuficiência de moderação de conteúdo das grandes “plataformas” (embora eu considere esse termo inadequado, foi o que “pegou” no uso comum). É evidente que elas falham bastante em remover conteúdo criminoso postado em suas redes e desinformação. Uma das razões é que as áreas dessas empresas responsáveis pela moderação de conteúdo foram intensos alvos das demissões em massa realizadas desde o ano passado, reduzindo fortemente, com isso, a sua capacidade de atuação.
Assim, é perfeitamente válido o argumento de que é preciso regulamentar essas plataformas, dados os prejuízos que a ampla disseminação de desinformação e conteúdo criminoso tem causado à sociedade e à democracia.
Não obstante, engana-se quem pensa que moderação de conteúdo é tarefa simples ou que pode ser realizada com pouco esforço. Convido o leitor a conhecer o jogo Moderator Mayhem, que pode ser jogado no próprio navegador, sem a necessidade de instalação. O jogador é colocado no papel de moderador de conteúdo de uma plataforma. A ele são são apresentadas situações de sucessiva dificuldade, onde ele deve decidir qual conteúdo deve ser mantido e qual deve ser suprimido. Nem sempre a escolha é clara e fácil. Quem pensa que é, sugiro que jogue e depois me diga se ainda tem a mesma opinião.
A concepção do Marco Civil
O Marco Civil da Internet foi concebido como resultado de um processo amplamente participativo, ouvindo as vozes e os argumentos da sociedade de forma ampla, desde a fase de Anteprojeto de Lei. Foi usada uma plataforma aberta à participação de qualquer pessoa
O anteprojeto de lei to Marco Civil da Internet foi elaborado de forma inovadora, utilizando a plataforma CulturaDigital.Br do Ministério da Cultura. O uso de uma plataforma já existente facilitou os trabalhos da SAL e foi essencial para a criação do anteprojeto da forma como ele foi feito.
Fonte: Wikipédia
de uma forma tão inovadora e participativa que foi estudada em dissertação de mestrado.
O artigo 19 do MCI foi elaborado a partir de intenso debate multisetorial (sic), que contou com espaços de ampla participação da sociedade civil organizada, do governo e do setor privado. (…)
Em outras palavras, o artigo 19 determinou que a palavra final sobre o que é ou não lícito nas plataformas é sempre do judiciário, pois essas empresas não podem ser responsabilizadas por conteúdo de terceiros se não descumprirem decisão judicial de remoção. Elas são livres para adotarem suas regras e suas operações de moderação de conteúdo, mas não serão obrigadas a indenizar por não atenderem a demanda extrajudicial de um usuário.
Fonte: João Pedro Favaretto Salvador e Tatiane Guimarães em artigo para a Fundação Getúlio Vargas
Os debates intensos também continuaram durante a tramitação do Projeto de Lei nas casas que compõem o Congresso Nacional.
Após ser sancionada, a Lei do Marco Civil da Internet se tornou um modelo para o mundo de regulamentação da internet, no qual outros países passaram a se inspirar como exemplo, ao discutir como elaborar a sua própria legislação.
O que aconteceria sem o art. 19?
Caso o STF decida anular o art. 19 do Marco Civil da Internet, qualquer um que mantenha um serviço na internet em que terceiros possam postar conteúdo poderia em tese ser responsabilizado civilmente por danos causados pelo conteúdo de terceiros. Isso se aplica tanto às grandes plataformas das Big Tech (ou, como são chamadas no podcast “Tech Won’t Save Us”, os vampiros de dados), quanto a pequenos fóruns e sites.
No caso das Big Techs, elas teriam condições de arcar com o aumento de custos, recontratando e ampliando as equipes de moderação (chamadas “Trust and Safety”). Provavelmente configurariam seus algoritmos automatizados de moderação para serem mais restritivos, podendo ampliar algo que já ocorre, que é a remoção injustificada de conteúdos perfeitamente legais, o chamado falso positivo. Isso algo que não recebe muita atenção ultimamente, dado o impacto na sociedade dos falsos negativos (quando o conteúdo ilegal é mantido na plataforma mesmo após ser denunciado). Além disso, essas empresas têm grandes equipes de advogados muito bem pagos para cuidar de qualquer caso de conteúdo de terceiros que venha a litígio.
No fim das contas, no entanto, as Big Techs saem ganhando pois, apesar dos custos maiores, a inexistência de proteção legal contra responsabilização por conteúdo de terceiros é um ambiente legal que impediria que qualquer concorrente menor, inovador, mas com menos recursos financeiros, apareça para tomar o seu lugar. Isso consolidaria ainda mais o oligopólio de pouquíssimas gigantes atualmente existente e concentraria ainda mais o mercado. Não é à toa que, há muito, não se vê inovação por parte das Big Tech. Em vez disso, parecem mais concentradas em fazer lobby por um tipo bem específico de regulamentação estatal que venha a consolidar ainda mais a sua posição e impedir o surgimento de novos concorrentes.
Isso também tem sido uma preocupação presente em discussões em outros países. Na União Europeia, o Digital Services Act, aprovado em 2022, estabelece regras claramente distintas para as grande plataformas online (Large Online Platforms). Nos EUA, Mike Masnick argumentou em discussão semelhante sobre a possível revogação da Section 230 do Communications Decency Act que tem sido levantada pelo congresso:
“Big Tech” is absolutely willing to compromise on Section 230, because they know that all it does is play into their hands. It’s all the other sites that get screwed because of litigation and liability. Meta and Google and the other big tech companies have buildings full of lawyers. Removing Section 230 may harm them at the margins, but they’ll make up for it by having all the smaller competition wiped out.
Tradução: As “Big Tech” estão absolutamente dispostas a fazer concessões sobre a Seção 230, porque eles sabem que tudo o que isso faz é jogar a seu favor. São todos os outros sites que se ferram por causa de litígios e responsabilidade. A Meta e o Google e as outras grandes empresas de tecnologia têm prédios cheios de advogados. Remover a Seção 230 pode prejudicá-los nas margens [de lucro], mas eles compensarão isso tendo toda a concorrência menor eliminada.
Fonte: Techdirt, maio de 2024
Por outro lado, no caso de pequenos sites e fóruns, é muito diferente. Muitas vezes, não possuem nenhuma fonte de renda e são apenas uma fonte de despesas, esforço e trabalho para a pessoa que o mantém. A mera possibilidade de correr o risco de ter que arcar com um processo na justiça por causa de uma postagem de terceiros pode levar muitos a considerar o fechamento de suas atividades, considerando a insuficiência de recursos para vigiar rapidamente tudo o que é escrito por terceiros e para se defender em processos judiciais, bem como a natureza não comercial desses espaços.
Com isso, é fundamental que não se faça uma revogação por completo do artigo 19 do Marco Civil da Internet, e sim que se acrescentem disposições específicas para situações específicas aplicáveis somente às grandes plataformas. Além da regulamentação europeia já em vigor, algo parecido com isso também tem sido defendido aqui no Brasil por especialistas como Ronaldo Lemos, que arguiu durante uma audiência pública no STF em 2023:
Sobre o Artigo 19, minha visão pessoal é de que em vez de revogá-lo por inconstitucionalidade, o melhor caminho é na verdade modular sua aplicação, prevendo situações específicas diferentes da sua regra geral, de novo, por meio do Congresso Nacional.
O futuro das pequenas comunidades digitais
Caso o artigo 19 perca integralmente a sua validade, os riscos para qualquer pessoa manter uma pequena comunidade digital ou fórum sem fins lucrativos na internet com a possibilidade de abrigar conteúdo de terceiros passarão a ser enormes. Seria lamentável perder todo o conteúdo e base de conhecimento acumulados nesses espaços. Por isso, no caso de responsabilização por conteúdo de terceiros, a alternativa sensata e que preserva essa base de conteúdos poderia ser congelar a comunidade ou fórum e não permitir nenhuma nova postagem, deixando-os apenas como fonte de consulta, na esperança de auxiliar quem procura informações. Porém, lamentavelmente, perdendo a sua característica interativa e a possibilidade de uma pessoa ajudar à outra diretamente, por exemplo, tirando dúvidas ou respondendo perguntas.
Apesar dos desafios, é fundamental que se encontre uma solução equilibrada, que preserve a liberdade de expressão e a inovação na internet, ao mesmo tempo em que estabeleça regras claras e específicas para as grandes plataformas, de modo a mitigar os danos causados pela disseminação de conteúdo prejudicial, mas sem prejudicar os pequenos sites. A regulamentação que se pretende alcançar precisa necessariamente se aplicar exclusivamente às grandes plataformas, a exemplo do que fez a União Europeia.