Dados abertos: o que mudou nos últimos 4 anos
Passados 4 anos desde que a Controladoria-Geral da União recebeu a responsabilidade pela política de dados abertos do governo federal, é chegada a hora de avaliar o que mudou nesse período.
Como era no início: 2010 a 2015
Antes, contudo, convém lembrar um pouco sobre como a política de dados abertos era conduzida até então.
Tomei posse em um cargo público no então Ministério do Planejamento em 2010, ainda isso fosse que financeiramente desvantajoso para mim, apenas pelo meu interesse pela temática de dados abertos e o desejo de construir como política pública algo que já despontava nos Estados Unidos e Reino Unido, que inauguraram os seus portais de dados abertos em 2009. Eu já estava, desde antes, envolvido como voluntário em diversos projetos de dados abertos da Open Knowledge Foundation, tais como o CKAN, do qual fiz a primeira tradução para o português ainda em 2009. O CKAN é o software livre usado nos portais de dados abertos desses países e segue sendo o mais usado no mundo para portais de dados abertos.
A ideia de que o governo federal deveria começar a oferecer dados abertos, como já contei várias vezes (por exemplo, em 2018 e em 2020), surgiu de uma provocação feita pelo Pedro Markun, ativista do grupo Transparência Hacker, ao Cláudio Cavalcanti, então Coordenador-Geral de Gestão Corporativa na SLTI no Ministério do Planejamento, durante o evento Conip 2010 (alguém deveria arquivar uma cópia deste vídeo para a posteridade).
Naquele momento também estava sendo gestada a Parceria para Governo Aberto, que promove a participação social na elaboração de políticas públicas. Somando-se isto ao fato de que não dispúnhamos de recursos orçamentários para a criação de um portal de dados abertos, decidimos elaborar tudo, desde o portal até a própria estruturação da política pública, da forma mais colaborativa e transparente possível.
Todas as reuniões de planejamento e sprints de desenvolvimento eram abertas à participação de qualquer pessoa interessada, muitas vezes realizadas fora do ambiente de governo em locais como cafés. Elas eram documentadas publicamente na internet e sempre que possível transmitidas por streaming – isso em 2011, muitos anos antes de se tornar moda todo mundo transmitir qualquer coisa por streaming – e com uma pessoa dedicada a trazer as interações das pessoas online para o ambiente físico dos encontros.
Todo esse processo tomou repercussão internacional bastante positiva. Afinal, qual projeto de governo você conhece, em qualquer época, em qualquer lugar do mundo, foram feitos dessa forma? Nesta página há um relato bem detalhado do processo. Ainda bem que o Web Archive tem uma cópia guardada do texto e das imagens, já que o conteúdo não está mais disponível no local original (abordaremos mais detalhadamente mais adiante essa indisponibilidade).
Capacitação, normatização e ganhos de escala: 2016 a 2017
Apesar do sucesso em estabelecer de forma colaborativa o que seria necessário fazer e criar um portal de dados abertos, a publicação de dados abertos nos órgãos públicos ainda dependia do convencimento individual de cada autoridade sobre a necessidade de patrocinar o processo. Faltava um marco normativo, algo que buscávamos desde o início, mas até então não havíamos conseguido apoio político suficiente para torná-lo realidade.
Em 2012, o que foi possível fazer foi uma instrução normativa que instituía a Infraestrutura Nacional de Dados Abertos – INDA e o seu Comitê Gestor. A história do Comitê Gestor já foi contada detalhadamente em outro texto neste blog.
Porém, foi no apagar das luzes do governo Dilma, em 2016, que surgiu a oportunidade de finalmente emplacar um decreto, como pretendíamos desde o início. Foi o Decreto 8.777, de 11 de maio de 2016, que tornou obrigatório no poder executivo federal que cada órgão ou entidade realizasse as suas publicações de dados abertos conforme um plano estabelecido pela própria organização pública.
Porém, restava ainda o desafio de apoiar essas centenas de organizações públicas a construir e colocar em prática esses planos. Com esse fim, capacitamos quase 1.800 pessoas sobre como elaborar Planos de Dados Abertos.
Os resultados foram visíveis: de 1.167 conjuntos de dados em 2016, o Portal Brasileiro de Dados Abertos passou a contar com 6.278 em 2018, o que representa um incremento de 438% em dois anos. A quantidade de órgãos públicos que publicavam dados no portal passaram nesse período de poucas dezenas para mais de uma centena.
“Cisma” do governo digital: 2018
Até então, tudo isso vinha sendo realizado no então Ministério do Planejamento, Orçamento (ou Desenvolvimento, em certo período) e Gestão. Em 2010, no contexto das políticas de interoperabilidade de dados do governo federal, o e-PING, foi lá na então Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação – SLTI, onde surgiram as condições para colocar os dados, e o acesso a eles de forma automatizada, em primeiro lugar.
Já em 2018 foi criada a Secretaria de Governo Digital, que levou toda a estrutura que antes era voltada à interoperabilidade no governo. As novas diretrizes eram claras: todos deveriam se focar na digitalização de serviços públicos, na então plataforma de análise de dados do governo chamada GovData, nas APIs internas de governo para governo ou na simplificação do processo de abertura de empresas. Nas palavras do então secretário, qualquer outro assunto que fosse alheio a estes (por exemplo, dados abertos, software livre e software público) não teria lugar na nova secretaria. Todos os servidores deviam trabalhar apenas naqueles assuntos considerados prioritários.
Transparência e dados abertos
Se a “casa” da política de dados abertos não podia mais ser o governo digital, onde seria então? A primeira candidata natural seria a Controladoria-Geral da União – CGU que, desde a vigência do Decreto 8.777 em 2016 já exercia o papel de monitoramento e fiscalização dos órgãos e entidades do poder executivo federal quanto ao cumprimento dos seus respectivos Planos de Dados Abertos.
A CGU também era responsável pela política de transparência do governo federal, tendo criado o Portal da Transparência ainda no ano de 2004. Mas transparência e dados abertos são a mesma coisa? Se não, quais são as diferenças?
De fato, há muitas semelhanças entre esses dois conceitos. Ambos visam a dar conhecimento ao cidadão sobre algo que é produzido usando recursos públicos, como forma de responsabilização (ou accountability, no termo em inglês muito usado no jargão) pelo uso desses recursos. São também uma forma de reduzir a disparidade de recursos de informação e, consequentemente, de poder, entre o cidadão e o Estado. Abrir dados também é uma forma de dar transparência ao funcionamento do Estado.
Todavia, há também diferenças tanto na origem normativa e conceitual, quanto no público alvo e contexto de uso dos produtos dessas políticas.
A transparência vem da política de transparência fiscal, oriunda das Leis Complementares n.º 101, de 2000, e 131, de 2009, que obrigaram todos os poderes e entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) a terem os seus próprios portais da transparência e neles publicar todas as receitas, despesas, orçamento, licitações, etc. Isto é, a transparência fiscal está intimamente ligada ao uso direto de recursos do erário e têm um enfoque em valores financeiros.
Claro que a transparência, em um sentido mais amplo, abrange também o que se faz e não apenas o quanto se gasta no setor público. Porém, na prática, é bem menos comum ver esse tipo de informação nos portais da transparência de entes públicos, provavelmente pelo fato de os requisitos para tal não estarem mencionados explicitamente nos textos das leis.
Por exemplo, o registro das despesas é citado nominalmente tanto la LC 101 (art. 48-A, II), quanto na Lei de Acesso à Informação – LAI (art. 8º, § 1º, III). Todavia, dados um pouco mais específicos, como os endereços e localização geográfica de todas as escolas e estabelecimentos de saúde não são explicitamente citados em nenhuma lei.
A transparência também tradicionalmente tem como público alvo o cidadão “médio”, leigo, que não tem letramento de dados. Isto é, apresenta análises prontas, elementos gráficos pré-concebidos e não tem muitas opções nem condições para realizar suas próprias análises ou combinar os dados com outros dados de outras fontes.
Com o expressivo aumento nos volumes de dados utilizados pela administração pública na última década, tornou-se cada vez mais necessário possibilitar que o próprio cidadão possa obter os dados e realizar as suas próprias análises. As transformações na sociedade, cada vez mais voltada ao digital, também alteraram o que seria o cidadão “médio”, uma vez que é cada vez mais comum que pessoas das mais diversas profissões tenham conhecimentos mínimos para trabalhar diretamente com dados.
É daí que surgiu a necessidade de “dados abertos” que empoderem o cidadão a fazer seu próprio uso dos dados como bem entender, em vez de ser “tutelado” pelos publicadores dos dados com análises prontas e receber documentos em texto em formato PDF que dificultam até mesmo realizar uma simples soma dos valores de uma coluna que estão em uma tabela. É também sobre ter independência e autonomia.
A disponibilização de dados abertos de forma regular e confiável também fomenta todo um ecossistema de serviços digitais que têm neles um insumo fundamental. Entre outras tantas aplicações, sistemas de inteligência artificial podem usar os dados para treinar seus modelos, por exemplo. Diversos estudos têm apontado, inclusive, os impactos econômicos da disponibilização de dados abertos e o seu papel no crescimento do produto interno bruto e no desenvolvimento sustentável das nações.
Ao contrário dos estados e dos municípios maiores, hoje em dia ainda é extremamente comum, especialmente em municípios menores, encontrar portais da transparência que não oferecem dados abertos. Têm apenas dados de receitas, despesas e licitações, frequentemente apenas em documentos PDF.
A LAI, em 2011, já trouxe, em seu art. 8º, exigências de abertura de dados, embora não utilizasse explicitamente o termo “dados abertos”. Mais tarde, também a Lei de Governo Digital, Lei n.º 14.129/2021 trouxe exigências mais detalhadas de transparência ativa em seu art. 21.
Pode-se dizer que, do ponto de vista conceitual, “dados abertos” vem geralmente associado à transparência, mas também como uma resposta às lacunas existentes nas práticas vigentes até hoje. No mesmo passo, percebe-se que as referências legislativas de dados abertos vêm todas cerca de uma década depois das de transparência. Tampouco existe a associação restritiva do conceito de dados abertos apenas com o aspecto fiscal e financeiro: dados abertos são sobre todo e qualquer domínio do conhecimento onde a organização atue. Onde se fala em dados abertos, é bem mais comum ver dados bastante específicos sobre a operação de uma determinada política pública, como, por exemplo a série histórica de preços dos combustíveis.
Uma conclusão sobre essa comparação é que transparência e dados abertos são conceitos que se complementam em vários aspectos, mas definitivamente não são a mesma coisa. Entretanto, pensar dados abertos apenas como mais uma forma de se atingir a finalidade da transparência é limitar as suas potencialidades. Em especial, aquelas voltadas à potencialização da economia digital.
A transição
Com isso, a “encomenda” que recebi ao final de 2018 foi de preparar a transição para que a CGU assumisse a responsabilidade pela política de dados abertos no poder executivo federal, no lugar do Ministério da Economia e da sua Secretaria de Governo Digital. Esse processo veio a culminar no Decreto 9.903, de 2019. O Portal Brasileiro de Dados Abertos e a INDA, com seu Comitê Gestor, também foram para a CGU, ficando o Ministério da Economia apenas com um assento no comitê, com participação semelhante a diversos outros ministérios.
Os últimos 4 anos
Desde que recebeu a política de dados abertos, a equipe da CGU vem passando por sucessivas trocas de gestão. O Comitê Gestor da INDA passou a se reunir com cada vez menor frequência. Alteraram a norma que definia, até então, essa periodicidade com bimestral para ser apenas de quatro em quatro meses. Porém, nem mesmo essa periodicidade foi cumprida: durante esses 4 anos, o Comitê se reuniu apenas 5 vezes. Em 2022, apenas uma única vez, em maio.
As atividades da INDA se pautavam por um Plano de Ação. A CGU elaborou um Plano de Ação para o período 2021-2022. Porém, segundo o monitoramento feito pela Open Knowledge Brasil, esse plano vem sendo alvo de sucessivos atrasos e adiamentos.
Quanto ao Portal Brasileiro de Dados Abertos, a CGU contratou, em 2021, com apoio da Unesco, uma reestruturação do mesmo. O portal já está no ar, mas os problemas se acumulam. Entre eles, a perda da memória do conteúdo histórico, tais como FAQs e páginas explicativas dos conceitos de conjuntos de dados e dados abertos, e também toda a wiki que continha os registros históricos de como operava a INDA até 2018. Há também dificuldade de se encontrar na nova interface os dados que se procura, já que os filtros de pesquisa não são facilmente encontráveis. O pior de tudo é a indisponibilidade da API do CKAN, que muitos órgãos públicos utilizavam para atualizar automaticamente os dados, inclusive o próprio Ministério da Economia.
Antes mesmo dessa reformulação, outra integração importante que existia já havia sido quebrada. Antes de ir para a CGU, o portal tinha uma integração com o sistema de ouvidoria do governo federal. Toda vez que qualquer pessoa encontrasse um problema com um conjunto de dados, poderia enviar uma reclamação que tramitaria pelo sistema de ouvidorias (inicialmente, pelo sistema chamado e-Ouv, que depois passou a se chamar Fala.br). A reclamação ia acompanhada, além da descrição do problema, também da URL do conjunto de dados sobre o qual se estivesse reclamando, de forma a melhorar a resolutividade, facilitando o trabalho da pessoa que fosse responde a reclamação. Em 2020, essa integração parou de funcionar. Não foi dada nenhuma explicação para a retirada da funcionalidade.
Além disso, todos os milhares de links para os conjuntos de dados existentes antes da reforma do portal se tornaram imediatamente quebrados. Não foi criado qualquer tipo de redirecionamento das URLs antigas para as novas, como infelizmente é comum acontecer em qualquer reformulação de portais de governo (sendo que, infelizmente, iniciativas como o Web Archive nem sempre conseguem arquivar todo o conteúdo antigo).
Um dos poucos pontos positivos foi a possibilidade de qualquer pessoa se logar com a conta do gov.br e escrever comentários sobre cada conjunto de dados específicos (por exemplo, em menos de uma semana em que é possível comentar, já apareceu toda uma discussão sobre problemas de qualidade ou dados corrompidos no dataset do CNPJ publicado pela Receita Federal). No entanto, moderar os comentários em um portal dessa magnitude certamente será um grande desafio – motivo principal dessa funcionalidade nunca ter estado disponível nas versões anteriores do portal.
A desassociação das políticas de dados abertos e de governo digital também tem sido criticadas pela sociedade civil, tal como neste artigo de Guilherme Felitti no blog Tecnocracia, com participação de Fernanda Campagnucci, diretora executiva da Open Knowledge Brasil.
Que venha 2023!
Esse período de 4 anos foi indiscutivelmente de poucos avanços e muitos retrocessos para os dados abertos no governo federal.
Com o novo governo provavelmente vêm novos gestores, e com eles novas prioridades e novas ideias. Quem sabe nas próximas semanas possamos discutir aqui e em outros lugares algumas delas.