Atualização sobre a decisão da Senacon sobre compartilhamento de dados da Meta
Há quase um mês eu escrevi sobre como a Senacon, a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, não viu problema nas novas práticas de compartilhamento de dados do WhatsApp anunciadas pela Meta no ano passado.
Agora, graças a uma solicitação pela Lei de Acesso à Informação feita pela agência focada em jornalismo de dados chamada Fiquem Sabendo, podemos saber mais sobre as justificativas por trás da decisão. Como resposta, eles obtiveram acesso à Nota Técnica n.º 42/2022/CGCTSA/DPDC/SENACON/MJ, que trata da
Averiguação Preliminar por supostas violações ao direito do consumidor relacionados ao compartilhamento de dados pessoais do WhatsApp para grupo de empresas Facebook Inc em violação ao Marco Civil da Internet e Código de Defesa do Consumidor. Solicitação de Esclarecimentos por este Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor. Informações Prestadas pela averiguada. Ausência de violação à legislação consumerista. Sugestão de Arquivamento.
As principais justificativas alegadas para indeferir a queixa são:
- o WhatsApp já oferecia uma escolha de “opt-out” para os consumidores que escolhessem não compartilhar seus dados com o grupo Meta;
- a empresa alega que as mensagens pessoais são criptografadas de ponta a ponta para todos os usuários do WhatsApp, inclusive para aqueles que recusaram a opção em 2016;
- a falta de evidências no processo de vazamentos de dados por parte do WhatsApp/Facebook;
- uma reclamação similar também teria sido rejeitada pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, que supostamente não teria encontrado violação de privacidade na nova política de privacidade e a teria considerado adequada à Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, segundo a Nota Técnica n.º 49/2022/CGF/ANPD.
A seguir, vamos explorar por que nenhuma dessas justificativas para de pé.
Argumento n.º 1: o suposto Opt-out e o beco sem saída do WhatsApp
É verdade que o WhatsApp já ofereceu uma opção de opt-out para usuários que não quisessem que seus dados fossem compartilhados com as outras empresas. Entretanto, a última vez que isso aconteceu foi em 2016 e a opção não foi mais disponibilizada desde então. Como reportado pelo G1:
A última vez que o app fez uma grande mudança de política de privacidade foi em 2016, mas as pessoas que já usavam o app podiam negar o compartilhamento de dados com o Facebook. Novas contas, por outro lado, não tinham essa opção.
Isso significa que a qualquer um que tenha começado a usar o WhatsApp depois daquele dia nunca foi ofertada a opção de não compartilhar os seus dados. Para a Senacon, então, essas pessoas não importam?
Talvez se possa argumentar que elas não deveriam aceitar os termos e usar o WhatsApp para começo de conversa. Existem aplicativos de mensagem seguros e em software livre que não são propriedade de gigantes da tecnologia. Eu mesmo recomendo que se usem eles: como escrevi no último artigo, o Element e o Signal são excelentes aplicativos.
Mas o quão prático é isso, dado que praticamente toda relação social e comercial nesse país é mediada pelo WhatsApp? Se você quiser usar o Element ou o Signal, você pode tentar convencer a sua família, seus amigos e colegas a usá-lo também e alguns deles podem até mesmo experimentar. Mas boa sorte ao tentar pedir alguma coisa na padaria ou farmácia perto de casa, ou chamar um encanador quando precisar do serviço. Algumas empresas com as quais você precisa se relacionar muitas vezes não têm nem mesmo e-mail, mas certamente oferecem serviço de atendimento ao consumidor pelo WhatsApp. Até mesmo alguns serviços governamentais são ofertados lá. Há mesmo uma escolha, na prática, para uma pessoa brasileira negar os termos de serviço e não uar o serviço?
Argumento n.º 2: criptografia de ponta a ponta do quê?
Claro que a Meta alega que o conteúdo das mensagens é criptografado de ponta a ponta. Acredite ou não nessa alegação. Como o aplicativo é de código fechado, é completamente impossível verificar a veracidade dessa alegação.
Ainda assim, mesmo que seja verdade, somente o conteúdo das mensagens é criptografado e a Meta não pode acessá-lo. Os metadados, tais como com quem você fala, seus números de contato, quando e com que frequência vocês trocam mensagens entre si, etc., ainda são perfeitamente visíveis para a Meta e eles de fato os querem a ponto de exigir que você os compartilhe com os seus parentes corporativos. Para empresas como o Facebook, que têm na publicidade microdirecionada o seu modelo de negócios, tais dados têm valor inestimável.
Como aprendemos com cada especialista em segurança, os metadados são tão ou mais importantes para a nossa privacidade quanto os próprios dados. Então a desculpa de que a empresa não tem acesso ao conteúdo das mensagens não tem nada a ver com a questão em pauta e não é um argumento pelo qual indeferir a reclamação.
Argumento n.º 3: se isso não for jogado na minha cara, isso não existe
O terceiro argumento é que o processo não apresenta nenhuma evidência de vazamentos de dados por parte da Meta. Eu nem preciso gastar muito esforço para explicar que isso só pode ser considerado uma ignorância voluntária. Qualquer um que tenha acompanhado as notícias ou faça uma busca na web descobrirá rapidamente a respeito do escândalo de dados Facebook-Cambridge Analytica revelado em 2018, que levou Mark Zuckerberg a ter que depor no Congresso dos Estados Unidos da América, ou do vazamento de dados de meio bilhão de usuários do Facebook em abril de 2021.
Argumento n.º 4: vamos alegar que outro relatório diz o que ele não diz
Agora isso é interesante. O fato de que outro processo contra a Meta já tinha sido concluído este ano pela ANPD não era conhecido por mim e não recebeu tanta atenção da mídia quanto quando a controvérsia começou em 2021.
O site da ANPD tem até mesmo uma matéria explicando o processo e mostra uma linha do tempo semelhante a um infográfico, mostrando os eventos começando com a mudança dos termos de serviço em janeiro de 2021.
Além disso, eles até disponibilizaram o conteúdo da recomendação conjunta e três notas técnicas exaradas pela ANPD sobre esse caso:
- Ato de Recomendação Conjunta (ANPD, Cade, MPF e Senacon)
- Nota Técnica n.º 02/2021/CGTP/ANPD
- Nota Técnica n.º 19/2021/CGF/ANPD
- Nota Técnica n.º 49/2022/CGF/ANPD
Eu ainda não li todas por completo e a análise desses documentos talvez mereça um artigo dedicado. Eu já posso dizer que a última nota técnica reconheceu que a Meta atendeu às determinações da autoridade, mas ainda assim determinou a instauração de um novo procedimento específico para avaliar a adequação à LGPD das práticas de compartilhamento de dados da empresa.
7.1.4. Instaure-se procedimento específico para avaliar o compartilhamento de dados pessoais entre WhatsApp e as empresas do grupo Facebook (Meta), no intuito de apurar sua adequação aos termos da LGPD.
Então é completamente falsa a afirmação da Senacon de que a ANPD já teria julgado as práticas da empresa como adequadas à LGPD:
2.4. Constata-se também que as mais recentes atualizações dos Termos de Serviço e da Política de Privacidade foram objeto de análise pela ANPD, que, após analisar as versões da Política de Privacidade de todas as ferramentas do aplicativo WhatsApp (WhatsApp Messenger, WhatsApp for Business e WhatsApp for Business - API), concluiu pela sua adequação à LGPD, por meio da 3ª Nota Técnica de nº 49/2022/CGF/ANPD, expedida em 06 de maio de 2022.
Além do mais, a ANPD tem levado em consideração apenas a adequação à LGPD, que é a matéria de sua competência. A Senacon, por outro lado deveria supostamente verificar a adequação à legislação e às normas de proteção ao consumidor – um assunto completamente distinto – e a nota técnica da Senacon não tem qualquer consideração sobre a questão. De fato, ela nem mesmo cita quaisquer normas de proteção ao consumidor, exceto pela citação da própria reclamação no primeiro parágrafo. O fato de que a ANPD reconheceu que a Meta cumpriu com as suas determinações em relação aos termos de serviço do WhatsApp é um non sequitur para a conclusão da Senacon.
Há uma saída?
No fim das contas, ainda continuamos com o problema de uma sociedade tomada como refém pela Meta. As poucas ocasiões em que milhões de pessoas de fato decidiram instalar um outro aplicativo de mensagem foram aquelas em que o judiciário, de maneira inconsequente, o bloqueou em todo o país em retaliação à noção equivocada de que poderia ser possível para a empresa entregar o conteúdo de mensagens, criptografas de ponta a ponta, trocadas entre criminosos. Se esses juízes tivessem assessoria técnica, poderiam ter pedido ao WhatsApp que entregasse os metadados em vez disso – o que possivelmente poderia ter sido suficiente, quando combinado com outras maneiras de obtenção de provas, para indiciar qualquer criminoso.
Durante esses blecautes do WhatsApp, milhões de brasileiras e brasileiros instalaram o Telegram e outros aplicativos de mensagens. Mas assim que o WhatsApp voltou a ficar disponível, essas pessoas desinstalaram esses aplicativos e voltaram a usar aquilo que estavam acostumadas – o WhatsApp.
Também vale mencionar mais uma vez que a absoluta dominância do WhatsApp no mercado brasileiro é consequência da prática de zero rating, ou franquia zero – na qual a empresa abusa do seu poder econômico ao subornar as empresas de internet móvel para manter os seus aplicativos fora dos limites estritos de tráfego de dados (franquia de dados) que são o seu modelo de negócios. E contam com a complacência de entidades governamentais como o Cade e a Anatel, que desde 2018 institucionalizaram o zero rating ao arrepio da neutralidade da rede determinada pelo Marco Civil da Internet.
Se o WhatsApp tivesse sido bloqueado dessa vez por uma razão que fosse de fato justificável, talvez poderia ter sido o empurrãozinho para que os efeitos de rede, combinados com o fogo de palha que foi a consciência do público momentânea sobre as práticas questionáveis de compartilhamento de metadados usadas por muitas empress, funcionassem para criar alguma concorrência e diversidade de fato no cenário dos aplicativos de mensagens.