Por que ainda chamamos o Facebook de plataforma? O que é mesmo uma plataforma?
Enquanto as gigantes de tecnologia estão sob mais escrutínio que nunca, estamos sempre ouvindo a mídia trazer repetidamente a discussão de plataforma vs. editora na imprensa internacional e também por políticos estadunidenses. Como a Electronic Frontier Foundation (EFF) apropriadamente coloca, para efeitos do CDA Seção 230, isso não importa. Como a EFF e outros pensadores da sociedade digital têm argumentado ao longo dos anos, a CDA 230 não faz tal distinção.
Uma questão de semântica
Mas o que é mesmo uma “plataforma”? Um uso comum por pessoas de fora do campo da tecnologia é usar a palavra para significar somente um lugar no qual as pessoas podem se expressar. Se você tem qualquer site que aceita conteúdo gerado pelo usuário, então você é uma plataforma.
Um problema com essa definição é que quase tudo o que existe hoje poderia ser considerado uma plataforma. Um serviço de mensageria? Uma plataforma. Um servidor de e-mail? Também uma plataforma. Uma seção de comentários em um blog? É plataforma.
Outro problema é que se você fizer uma analogia dessa definição para o mundo analógico, muitas coisas que as pessoas normalmente não considerariam como uma plataforma se tornam repentinamente uma plataforma também. As pessoas podem conversar umas com as outras na praça da cidade (ou podiam, antes do coronavírus). Então é uma plataforma. Um quadro de avisos. Uma galeria de arte. Muros com graffiti. Qualquer forma de expressão. Quase tudo é uma plataforma. É uma bagunça.
Então, talvez devêssemos nos voltar ao dicionário para tentar encontrar um significado mais restritivo para a palavra plataforma.
Para o Dicionário Priberam, da Língua Portuguesa, no contexto da informática, uma plataforma significa
Tipo de sistema computacional estabelecido pelo hardware e pelo sistema operativo, que define como pode ser usado e qual o software compatível.
Exemplos de uso da palavra nesse sentido são quando as pessoas dizem que algum software roda na plataforma Windows, ou na plataforma MacOs. Mas e os serviços online?
Plataformas Online
De forma semelhante a outros tipos de software, os serviços online são plataformas quando eles possibilitam que outros tipos de aplicações de software e serviços sejam executados sobre eles. O artigo de Adrian Bridgwater para a Forbes em 2015 traz a definição da palavra plataforma mais próximo a esse conceito:
Enquanto costumávamos pensar em uma plataforma como um sistema computacional subjacente, agora provavelmente temos que aceitar o fato que a indústria considera como sendo uma plataforma qualquer coisa sobre a qual se possa construir. Para ficar mais claro, uma plataforma poderia ser o seu smartphone, i.e. ele tem o seu próprio formato e a sua própria capacidade de se interconectar com outros fluxos de software, portanto é uma plataforma com a qual você pode fazer outras coisas que não estavam originalmente previstas no momento do seu projeto.
Esse pode ter sido o caso, ele argumenta, em 2015, do Facebook. Entretanto, se o Facebook já foi algo sobre o qual você podia construir algo usando APIs extensivas para construir novos serviços, essa possibilidade foi removida, na prática, nos anos mais recentes.
O Facebook tem sido bastante agressivo em combater outros serviços que ousam permitir que você se conecte a amigos no Facebook e receber conteúdos do Facebook sem de fato entrar no Facebook.
Em 2008 uma empresa chamada Power Ventures criou um produto que faria justo isso, permitir que os usuários agregassem em um único lugar conteúdo de todas as suas contas em redes sociais. O Facebook não apenas bloqueou a aplicação, mas também foi aos tribunais usando a Computer Fraud and Abuse Act (CFAA), ou Lei de Fraude e Abuso em Computadores, de 1986, a mesma lei que viria a ser usada anos depois para acusar Aaron Swartz com penas de até trinta e cinco anos de reclusão por ter baixado um conjunto de artigos científicos financiados com recursos públicos, os quais a sua universidade tinha direito de acesso.
A batalha judicial levou mais de nove anos e os tribunais ordenaram que os réus pagassem mais de cem mil dólares e estabeleceram um precedente perigoso de que, devido ao CFAA, uma violação dos termos de serviço do Facebook poderia estar sujeita às penalidades do CFAA. Nas palavras de Andrew Crocker e Cory Doctorow pela EFF sobre o caso,
apesar de o Nono Circuito ter decidido anteriormente que uma mera violação dos termos de serviço não fosse uma violação do CFAA, o tribunal decidiu que a Power Ventures violou, sim, o CFAA quando continuou a prover seus serviços depois de receber a carta de cessamento e desistência. Então a decisão da Power Ventures permite que as plataformas não apenas policiem suas plataformas contra quaisquer violações dos termos de serviço que julguem ser questionáveis, mas também transformem mesmo pequenas transgressões contra um contrato de adesão unidirecional em uma violação de uma lei federal que sujeita potencialmente a penalidades sérias civis e criminais.
Mais recentemente, o Nono Circuito limitou um pouco o escopo do caso Power Ventures no caso HiQ v. LinkedIn. O tribunal esclareceu que raspar sites públicos não é uma violação do CFAA, independente do envio de cartas de cessação e desistência aos raspadores. Entretanto, isso ainda deixa fora dos limites quaisquer materiais que você tenha que fazer login para ver – como a maior parte das postagens no Facebook – se a plataforma decidir que não gosta do raspador.
Outro projeto que costumava tornar possível a interoperabilidade com várias redes sociais é a ferramenta em software livre Friendica. Ela costumava funcionar com o Facebook, até que, em 2015, o Facebook cortou o acesso à API que tornava possível fazer essa integração. Nas palavras do entusiasta do Friendica Andreas Hannusch, em uma entrevista ao Projeto Green Net, em 2018:
uma grande vantagem é a facilidade de instalação e a ampla gama de tipos de contatos com que eu posso me comunicar: e-mail, Friendica e redes relacionadas, até o Twitter pode ser integrado. O Facebook parou de funcionar desde que o Facebook descontinuou a sua API.
Um terceiro exemplo é contado por Jay Graber, desenvolvedora e fundadora do Happening, no painel “Se a Big Tech é tóxica, como construímos algo melhor” promovido pelo Internet Archive. Ela construiu certa vez uma ferramenta que permitia às pessoas organizar eventos e convidar os amigos no Facebook, usando a API do Facebook. Todavia, o Facebook só permite que a aplicação veja quais amigos estão na sua lista de amigos caso esses amigos também tenham autorizado previamente que a mesma aplicação os contacte. Se por um lado isso serve para limitar a responsabilidade do Facebook caso a aplicação comece a enviar spam aos usuários, por outro também sufoca quaisquer competidores em potencial, os impedindo de interoperar com a base de usuários do Facebook de uma maneira que beneficiaria esses usuarios.
É possível consertar essa treta?
No fim das contas, a possibilidade de se interoperar com o Faecebook tem desaparecido regularmente ao longo dos anos, a tal ponto que poderia se argumentar que o Facebook não é mais uma plataforma, no sentido em que viemos discutindo até aqui.
Digo sobre o tipo de interoperabilidade que beneficia os usuários do serviço e não necessariamente o que os acionistas do Facebook acreditam ser o mais rentável. É desse tipo de interoperabilidade que o Facebook se aproveitou, quando usava uma ferramenta que possibilitava que os usuários mantivessem contato com seus amigos que estivessem ainda usando apenas o MySpace, mas que depois disso chutou a escada que usou para chegar ao topo. É o conceito que o Cory Doctorow chama de interoperabilidade adversária (que agora está sendo renomeada como compatibilidade competitiva uma vez que, segundo o Cory, os alemães não conseguem pronunciar isso), na qual os entrantes em um mercado têm permissão para interoperar com os serviços estabelecidos das partes dominantes, mesmo que isso não seja dos interesses dessas partes.
Para melhorar a competitividade do setor tecnológico, é o CFAA, o DMCA 1201 e outros regulamentos que têm favorecido a construção de efetivos e gigantes monopólios que precisam ser corrigidos, não o CDA 230.
O CDA 230, e legislações correlatas existentes em outros países (como o art. 19 do Marco Civil da Internet no Brasil) é o que possibilita que pequenos sites que permitem conteúdo do usuário, como um fórum com Discourse que eu administro sejam de fato capazes de operar, já que a responsabilidade por discursos ilegais fica com a parte que está de fato o produzindo, e não com o operador do site.
Novas abordagens regulatórias também precisam ser consideradas com muito cuidado, já que as gigantes de tecnologia têm muito mais recursos para investir em compliance, enquanto pequenas startups e competidores em potencial frequentemente não os têm. Por causa disso, a Big Tech tende a ver com bons olhos novas regulações, já que as vê como uma maneira de fortalecer seus monopólios, afastando novos entrantes do mercado. Elas também investem grandes quantias de dinheiro em lobby por novas leis que as favoreça.
Uma outra questão que deveríamos estar perguntando é: nós precisamos de plataformas? Mike Masnick do Techdirt propõe um tipo diferente de solução em seu artigo intitulado Protocolos, não Plataformas, publicado pelo Knight First Amendment Institute na Universidade de Columbia.
Um exemplo muito interessante de um protocolo aberto e descentralizado é o Protocolo Matrix para mensageria e bate papo. Há diversos nós de serviço que usam diferentes clientes diferentes em software livre, como o element.io, que podem facilmente interoperar entre si.
Descentralizar serviços é um passo necessário para resolver a treta dos monopólios da tecnologia, mas não é suficiente. Ainda fica a questão da moderação de conteúdo, que é um problema quando é centralizada e é difícil quando é descentralizada. Dois episódios recentes do podcast Techdirt ( ”Fazendo uma Internet Melhor”, que foi um evento online do Internet Archive, também disponível em vídeo, e também “Uma Web Mais Competititva” ) discutem algumas ideias possíveis para tratar o problema. Eles são, ainda, excelentes discussões em si mesmas, com alguns dos melhores especialistas em políticas de internet e sociedade digital. Eu recomendo fortemente ouvir ambos eles. Também recomendo o podcast “Como consertar a internet”, da EFF.