Senacon não vê problema em compartilhamento de dados do WhatsApp

imagem: Alberto Rodríguez Santana on Unsplash

Parece que foi há muito tempo atrás quando, no início de 2021, o WhatsApp, o aplicativo de mensagens mais usado no Brasil, usado diariamente por 95% dos brasileiros para tudo desde bate papo da família a transações comerciais, causou um furor quando decidiu que iria mudar a sua política de privacidade para compartilhar dados com sua empresa sede, então chamada Facebook, agora Meta. Os usuários seriam obrigados a aceitar a nova política se quisessem continuar a usar o aplicativo.

Depois do desastre de relações públicas que essa alteração causou, o WhatsApp decidiu na época postergar a mudança no Brasil. As novas regras também não se aplicariam à Europe, supostamente devido ao seu forte arcabouço legal de proteção de dados. Todavia, o Brasil tem, sim, uma lei de proteção de dados bem semelhante ao RGPD europeu: a LGPD. Como colocou Michel de Souza, diretor de políticas públicas da ONG Derechos Digitales:

A nossa lei de dados é fortemente inspirada na normativa europeia, então por que eles não aplicam as mesmas políticas aqui?

Mais tarde em 2021 a alteração entrou em vigor mesmo assim. Qualquer um que não tivesse manifestado sua opção por não compartilhar dados dentro de uma janela de 30 dias aberta em 2016 seria automaticamente submetido às novas regras.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC, uma ONG focada na proteção do consumidor, o compartilhamento de dados viola não apenas a LGPD, mas também o Código de Defesa do Consumidor, uma vez que constitui “consentimento forçado”. Em 2016 eles produziram um relatório detalhando os argumentos.

Hoje, a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor – Senacon, o órgão do governo federal responsável pela proteção ao consumidor no Brasil, publicou no Diário Oficial da União uma decisão sobre o assunto. Eles afirmam que a prática não viola a legislação do consumidor e arquivam o processo:

Solicitação de Esclarecimentos por este Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor. Informações Prestadas pela averiguada. Ausência de violação à legislação consumerista. Sugestão de Arquivamento. Acolhendo as razões expressas na NOTA TÉCNICA Nº 42/2022/CGCTSA/DPDC/SENACON/MJ (20929036), as quais passam a fazer parte da presente decisão, determino: o arquivamento do presente feito,

Fonte: Despacho n.º 1.573/2022, no Diário Oficial da União de 25/11/2022, seção 1, página 204, retificado pelo Despacho n.º 1.613/2022, publicado no D.O.U. de 1/12/2022, seção 1, pág. 59.

Governo brasileiro carimbando as práticas da Meta

A decisão segue uma infeliz tendência do governo brasileiro de decidir em favor da expansão de mercado da Meta no Brasil. Em 2016, a respeito da prática da companhia de pagar as telecoms para manter seus aplicativos de fora da franquia de transferência de dados da internet móvel, uma prática nociva que é usada até hoje chamada zero rating, a agência reguladora Anatel decidiu a favor do zero rating, sugerindo que a prática poderia ser até mesmo benéfica:

Pela análise empreendida, além dos ganhos de eficiência que já demonstrei, é possível perceber que a conduta de prática de preços diferenciados, representada pelo Ministério Público Federal junto ao CADE, não produz efeitos limitadores da capacidade de inovação e do caráter disruptivo do mercado de provimento de conteúdo, e, por este motivo, não gera barreiras à entrada no mesmo.

Parte da decisão de Aníbal Diniz, Conselheiro da Anatel, a favor do zero rating, datada de 9 de Novembro de 2016.

Parte da decisão de Aníbal Diniz, Conselheiro da Anatel, a favor do zero rating, datada de 9 de Novembro de 2016.

Isso a despeito do que diz a lei no Marco Civil da Internet, que explicitamente exige a neutralidade da rede no artigo 9:

Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

Fonte: Marco Civil da Internet

A decisão também foi carimbada pelo CADE, que decidiu em 2018 que o zero rating não constitui uma prática anticompetitiva e não viola as leis anti-truste.

Todos sabemos o resultado: o WhatsApp se tornou ainda mais dominante que antes no Brasil nos anos seguintes, sem que outros aplicativos de mensagens pudessem chegar perto do WhatsApp em quantidade de usuários. As campanhas massivas de desinformação perpetradas pelo WhatsApp no mesmo ano, segundo Yasodara Cordova, então pesquisadora no Berkman Klein Center for Internet & Society na Universidade de Harvard, influenciaram fortemente as eleições naquele ano.

O futuro do compartilhamento de dados de usuários do Whatsapp

Segundo o IDEC, o processo ainda está pendente na autoridade de proteção de dados, ANPD, a qual recentemente ganhou independência, recebendo a natureza jurídica de autarquia.

Todavia, a decisão de hoje é certamente uma vitória para a Meta e uma derrota para a privacidade de milhões de brasileiras e brasileiros.

Enquanto isso, as pessoas sempre podem usar mensageiros que respeitam mais a sua privacidade, como o Signal ou o Element. O problema é fazer com que os seus contatos usem o mesmo aplicativo, já que as pessoas tendem a resistir usar qualquer coisa de diferente daquilo com o que já estão acostumadas – independente se essa familiaridade foi forçada em cima deles por uma empresa gigante usando práticas comerciais questionáveis.

Assim como qualquer outra pessoa, eu também odeio ler políticas de privacidade. É por isso que eu recomendo a todo mundo que verifiquem se a política de privacidade já foi avaliada no ToS;DR antes de se cadastrar, ou de continuar a usar, qualquer serviço. E a contribuir com uma avaliação caso não tenha sido.

Editado: para incluir a referência ao artigo sobre termos de serviço e incluir o despacho de retificação da Senacon, que alterou o número da Nota Técnica referenciada.

Atualização (24/12/22): após ter acesso à nota técnica que fundamentou a decisão, escrevi outro artigo com a sua análise.