Lembranças de Therezinha Costa
Therezinha Costa nasceu em Teixeiras, Minas Gerais, em 13 de agosto de 19XX (não vou dizer o ano exato, mais tarde você vai descobrir por quê), filha de Maria Luiza Costa e Antônio Domingos Costa, a caçula de 8 irmãos. Tia Terô, como a chamávamos carinhosamente, era irmã da minha avó Ana Luiza. Ela era uma pessoa inteligente, gentil e carinhosa, muito querida por todos na família. Nós costumávamos pedir conselhos a ela em muitas situações da vida. Ela tinha um talento em nos ajudar a nos compreender melhor. Nas palavras de minha tia Ana Lúcia, que é sua sobrinha,
Tia Therezinha era uma psicóloga nata! Ela me ajudou muito em situações de muitos conflitos emotivos e existenciais! Foi uma mãe também, em muitos aspectos, como sua atenção, e tínhamos uma relação muito de igual para igual. Isso foi muito importante pra mim!
Essa pode ter sido uma das razões pelas quais ela decidiu estudar psicologia, ainda que com uma idade relativamente avançada e apesar dos muitos obstáculos que ela teve que enfrentar para ir à universidade.
Aos 9 anos ela teve pólio, que a deixou paralisada da cintura para baixo. Apesar dessa condição, ela era uma pessoa muito ativa e independente e fazia a maioria das coisas sozinha. Por exemplo, para poder alcançar algo alto em uma prateleira, muitas vezes ela se sentava nos braços da cadeira de rodas para se apoiar e pegar a coisa. Nas situações em que ela precisava de ajuda, todavia, era muito fácil para outras pessoas ajudá-la porque ela mantinha um corpo muito leve. Mesmo assim, a falta de acessibilidade na época tornava a vida mais difícil. No Brasil dos anos 1980, quase nenhum prédio era acessível para pessoas com mobilidade reduzida. Eu me lembro de meu pai me contar que ela tinha que ser carregada uma longa escadaria acima para poder acessar as suas aulas na faculdade. Ainda bem que as leis mudaram desde então e todos os prédios são obrigados a ter rampas de acesso ou elevadores. Às vezes ela também tinha dificuldades em encontrar um táxi disposto a levá-la junto com sua cadeira de rodas.
Quando criança, eu adorava ter longas conversas com ela a qualquer hora, sobre qualquer assunto. Às vezes, nós conversávamos na hora de dormir, no escuro, pelo que pareciam na minha percepção de criança serem horas a fio, mas que provavelmente deviam ser cerca de meia hora. Eu me lembro que jogávamos juntos muitos jogos de tabuleiro e quebra-cabeças lógicos, tais como “Detetive” (um jogo de dedução fabricado pela Estrela), “Cara a Cara” “Resta Um”, “Cilada”, o Cubo Mágico e um jogo de tabuleiro de viagens pelo mundo, cujo nome não me recordo, além de muitos outros. Ela gostava especialmente do jogo de destreza chamado bilboquê e eu também. Nesse jogo, a pessoa segura um bastão que tem um pino na ponta e está conectado por um barbante a uma bola. Movendo o bastão, a pessoa joga a bola ao ar, que por sua vez precisa se encaixar no pino por uma pequena cavidade.
Nós também gostávamos de desenhar lindas curvas feitas com o Espirógrafo, que eu havia ganhado de presente dela, ou do meu pai, eu não me lembro. Se você não conhece o espirógrafo ou os desenhos hipnotizantes que ele nos proporciona produzir, pense em um círculo dentro de outro círculo, conectadas por dentes (como uma engrenagem), com buracos dentro para inserir uma caneta ou lápis. Quando a roda gira, uma curva aparece. A forma da curva depende de muitos parâmetros como qual buraco se usa ou o tamanho da roda interna. Veja a página da Wikipédia para mais informações ou a animação a seguir.
Essas figuras sempre me deixaram pensando se a curva se conectaria em algum momento com o início e, caso se conectasse, quantas giradas da roda levaria para isso acontecer. Tenho certeza de que todos esses quebra-cabeças e jogos de lógica me influenciaram a amar a matemática.
Quando eu era muito pequeno, certa vez peguei um pedaço de carvão frio da lareira e escrevi “EAT” nela. Meu pai pensou inicialmente que eu estivesse com fome, pela palavra que essas letras formam em inglês, considerando que eu comecei a escrever muito cedo. Mas logo ele percebeu que se tratavam das iniciais dos nossos nomes: Eduardo, Augusto, Therezinha.
Tia Terô fazia o melhor pão de queijo que eu já tive o prazer de comer. A sua receita, mais tarde reproduzida também pelo meu pai durante muitos anos, pelo que eu me lembre, levava:
- Polvilho (do tipo doce, não azedo)
- ovos
- manteiga
- leite
- queijo canastra
Como eu era uma criança, eu não me lembro das quantidades utilizadas. Ela, e mais tarde também o meu pai, eram rígidos na regra de que o polvilho azedo nunca deveria ser usado e somente o tipo de queijo canastra deveria entrar na receita do pão de queijo. O queijo canastra é um tipo especial de queijo feito na região da Serra da Canastra, no estado de Minas Gerais.
Eu encontrei uma versão de uma receita que usa queijo canastra. Essa receita lamentavelmente usa também o polvilho azedo 😬 além do doce. Estou brincando, misturar os dois tipos de polvilho é uma prática comum e não é ruim: a variedade “doce” dá a ligadura e a elasticidade; a natureza ácida do polvilho azedo favorece a fermentação e faz o pão de queijo crescer.
Pão de queijo
(receita atribuída a Mário)
- 200 g de polvilho azedo
- 200 g de polvilho doce
- 300 g de queijo canastra artesanal, meia cura
- 100 g de manteiga sem sal
- 300 g de leite integral
- 100 ml de água
- 15 g de sal
- 4 ovos
- Em uma vasilha grande, misture os dois tipos de polvilho e o sal. Em uma pequena panela, ferva a água, o leite e a manteiga juntos. Quando eles ferverem, misture com uma colher e vire lentamente todo o líquido sobre o pó. Misture lentamente com uma colher e, depois que esfriar, com seus dedos.
- Rale o queijo do lado grosso e adicione-o junto com os ovos. Misture tudo e amasse a massa com as palmas das mãos até as bolinhas de polvilho sumirem, deixando apenas os pedaços de queijo.
- Unte as mãos com uma gota de óleo e enrole a massa em pequenas bolas (20 g cada). Unte a forma ou cubra-a com papel alumínio e coloque os pães de queijo separados entre si pela distância de 3 cm.
- Aqueça o forno a 180°C e asse-os até o ponto de sua preferência.
O pão de queijo de tia Therezinha era delicioso. Eu às vezes oferecia ajuda para amassar a massa. Porém, como eu era criança, não tinha a paciência de esperar os 30 minutos que ele leva para assar ao forno. Uma vez eu até mesmo provei um pedacinho cru, apesar de ser desaconselhado pelos adultos, porque a massa contém ovos crus, que trazem consigo risco de contaminação. Como dizia a Tia Terô: “quem tem pressa, come cru”.
Uma das últimas fotos dela foi tirada por mim, com a minha câmera Kodak I77XF, que eu usava tanto quanto os meus pais me dessem filme fotográfico. Sim, as câmeras na época só eram capazes de tirar fotos se houvesse filme, que, por sua vez, precisava ser levado a um loja para ser revelado. E apesar do que o nome possa sugerir, ao contrário de uma câmera Polaroid, aquela câmera não imprimia as fotos imediatamente. Ela precisava de filme 126 da Kodak e tirava fotos com uma proporção bem incomum que é a quadrada. Poderia-se dizer que a Kodak fez as fotos de proporção quadrada serem populares décadas antes do Instagram. Aquela foto apareceria então no editorial de uma “revista” que eu fiz, escrita em máquina de escrever.
A ideia da revista que eu fiz quando era criança era fazer fotocópias de artigos em livros e enciclopédias sobre assuntos que eu achasse interessante e então distribuí-las a membros da família. Eu pedi à Tia Terô a sua opinião sobre qual deveria ser o assunto da segunda edição e ela sugeriu que fosse química. A data da edição é de 15 de agosto de 1990.
Segue uma transcrição:
O assunto deste número é química, a pedido de aniversário da aniversariante do dia 13 de agosto de 1990.
Quem é a aniversariante? É essa tricotando aí, à esquerda, ó!
Quantos anos ela fez? Aí eu não sei, perguntem a ela. E mesmo que eu soubesse eu garanto que ela não gostaria de ver sua idade aqui, para todo mundo ler.
O editor
Lendo isso hoje, chamaram a minha atenção a falta de erros ortográficos e o tom brincalhão do editorial. Essa passagem acima é o motivo de eu não ter revelado o seu ano de nascimento no início deste texto.
Ela adorava tricotar. Eu me lembro de ter luvas, gorros e outras roupas quando criança que foram tricotados por ela. Até hoje tenho uma coberta feita por ela.
Pouco depois disso, em novembro de 1990, um trágico acidente automobilístico levou a vida dela e de minha avó Ana Luiza. Meu avô também ficou gravemente ferido, mas depois de muito tempo no hospital ele se recuperou. Todos eles ainda vivem em nossos corações e tenho ótimas recordações de infância do tempo que passei com eles.