Verificação etária: o cavalo de troia das Big Techs na “Lei Felca”

imagem: Zeki Okur / Unsplash

Em agosto de 2025, “viralizou” um vídeo do influenciador Felca sobre a “adultização” de crianças e adolescentes nas redes sociais, o qual alcançou muitos milhões de visualizações e denunciou a prática de crimes envolvendo a exploração de menores.

O termo “adultização” passou a ser usado para descrever a exploração da imagem de crianças pelas redes sociais, em prejuízo ao seu desenvolvimento. A definição da Wikipédia:

A adultização é um fenômeno social em que crianças ou adolescentes são expostos, ou incentivados, a comportamentos, responsabilidades e experiências típicas do mundo adulto antes de alcançarem a maturidade física, emocional e psicológica necessária para lidar com tais situações. Essa abreviação da infância pode gerar consequências significativas para o desenvolvimento integral da criança.

Não há dúvida de que as Big Techs estavam obtendo lucro com a omissão diante da exploração de menores. E, ironicamente, lucram também com o vídeo da denúncia, pois teve tantos milhões de visualizações. Enquanto somente o primeiro é moralmente abjeto, ambos enriqueceram a plataforma.

O Brasil já possui, há muitos anos, legislação robusta para penalizar quem viola os diretos de menores – o Estatuto da Criança e do Adolescente (abreviado como “ECA”, daí o outro apelido “ECA Digital”), já tem 35 anos de vigência. Tanto é que o influenciador acusado de promover vídeos com adolescentes em situações sexualizantes foi preso e está sendo investigado pela polícia.

Faltava, apenas, uma forma de responsabilizar as plataformas que criam perfilamento de menores e usam seus algoritmos para colocá-las em situação de perigo, como denunciado pelo Felca. Para isso, a legislação atual não era suficiente.

É certo que algo precisava ser feito, em especial medidas protetivas às crianças e adolescentes, direcionadas à operação dessas plataformas. O Presidente da Câmara Hugo Motta poderia ter desarquivado o PL 2.630/2020, que pretendia regulamentar as gigantes de tecnologia estrangeiras, mas foi engavetado por seu antecessor, Arthur Lira. Todavia, uma considerável parte dos parlamentares são hoje um braço das Big Tech no Congresso e não permitiriam isso.

Em vez disso, começaram a aparecer outros projetos de lei, surfando na onda da comoção social provocada pela denúncia.

A pressão e a pressa por nova legislação

A repercussão da denúncia motivou parlamentares brasileiros a apresentarem do dia para a noite dezenas de projetos de lei sobre o tema. No fim, todos os esforços se concentraram sobre um único texto, o Projeto de Lei 2.628/2022, que já havia sido aprovado no Senado, estava mais maduro e havia sido mais discutido, em comparação com outros projetos semelhantes. Caso os deputados tivessem aprovado o texto como estava, o texto iria diretamente para a sanção presidencial para se tornar lei.

Entretanto, os deputados decidiram alterar o texto. As alterações foram feitas a toque de caixa e sem discussão com a sociedade e as partes afetadas. É aí que mora o perigo da atuação de lobbies ocultos de interesses específicos, inclusive e principalmente a favor das Big Techs.

De fato, as medidas adotadas tiveram um alcance muito além das plataformas, potencialmente atingindo, como veremos, também os seus concorrentes produzidos por voluntários e sem fins lucrativos, que têm condições muito limitadas ou mesmo nenhuma condição de implementá-las.

Alterações apressadas feitas pela Câmara e seus efeitos

Ao passar pela Câmara dos Deputados, o PL 2628/2022 passou por muitas alterações que, como veremos, atendem aos interesses das empresas gigantes de tecnologia. Ao contrário do texto original, devido à pressa pela aprovação, não houve tempo para ampla discussão do novo texto.

Foram inseridos alguns dispositivos que, pode-se argumentar, podem favorecer as Big Techs e empresas do setor de verificação de identidade e/ou idade online. Comparado com o texto original, o novo texto:

  • impõe custos adicionais a determinados setores que somente as gigantes têm condições de arcar – reduzindo, assim, a concorrência;
  • amplia a já extensa coleta de dados pessoais.

As alterações se referem, principalmente, à criação de obrigações legais em relação à verificação de idade e a quem se aplicam as novas obrigações.

A seguir examinaremos cada uma mais detalhadamente. Muitas das discussões que tenho visto na imprensa, em blogs, podcasts, etc., têm sido bastante rasas e nunca se referem a dispositivos específicos do texto. Em vez disso, resumem-se a discutir o assunto da proteção às infância e adolescência na internet de forma genérica. Em raras ocasiões apontam para um dispositivo específico do texto ou o que o texto realmente diz. Quando estão em forma de texto, no máximo citam o número do projeto de lei e nunca colocam o link para o texto – que pode ser difícil de encontrar, em sua versão atualizada.

Aqui, por outro lado, somos transparentes, citamos o texto dos projetos de lei literalmente e colocamos o link para que o leitor possa verificar por si mesmo e tirar suas próprias conclusões.

Obs.: o site do Senado bloqueia os acessos a partir de diversos provedores de VPN. Como o leitor deste blog provavelmente é mais consciente de sua privacidade e pode estar usando uma VPN, caso não consiga acessar os links, tente desligar a sua VPN.

Verificação etária

A verificação de idade na internet, em si, é muito mais problemática em comparação à mesma verificação no mundo físico. É algo bastante complexo de se fazer de uma maneira que respeite a privacidade e a proteção dos dados pessoais.

Como argumenta a Electronic Frontier Foundation (EFF), a verificação etária afeta pessoas de todas as idades, não somente crianças e adolescentes. Há diversas formas propostas de como verificar a idade de uma pessoa online. Segundo a EFF,

O método mais comum de verificação de idade, coleta de identidade online, é fundamentalmente diferente – e mais perigoso – do que as verificações de identidade presenciais no mundo físico. As verificações de identidade online não são apenas uma exibição momentânea: elas exigem que os adultos carreguem documentos de identificação emitidos pelo governo, ricos em dados, para o site ou para um verificador de terceiros, e assim criam um registro potencialmente duradouro de sua visita ao estabelecimento.

Existem outras formas de verificação etária que não passem por uma coleta de identidade? Sim, existem propostas alternativas, como salted hashes e Zero Knowledge Proof (ZKP), como proposto originalmente pela Comissão Europeia dentro do padrão eIDAS para a Carteira de Identidade Digital da UE. De fato, na União Europeia, os governos tendem a ter mais cuidado com a privacidade na implementação da transformação digital e os próprios cidadãos se importam mais com a própria privacidade, em comparação a países como Brasil e Estados Unidos. O próprio padrão de carteira digital da UE é muito mais respeitador dos direitos fundamentais e da privacidade do cidadão, quando comparado ao modelo brasileiro.

Contudo, essas propostas tendem a ser complexas em sua implementação e muitas vezes são abandonadas em nome da simplificação, comprometendo, nesse processo, a privacidade da pessoa usuária. Isso está acontecendo mesmo na União Europeia, como denunciado pela EFF, que acabou tornando opcional, e não mais obrigatório, o uso de algumas das técnicas que a própria Comissão Europeia havia previsto para proteção à privacidade.

Em diversos outros lugares do mundo, políticos têm se aproveitado do pânico moral gerado por diversos casos graves envolvendo crianças e adolescentes para tentar (e, muitas vezes, conseguir) instituir a obrigação de verificação etária em diversas aplicações de tecnologia. A EFF monitora esses casos e publicou uma resenha global sobre verificação etária em 2024, da qual recomendo a leitura.

De qualquer forma, as Big Techs agradecem pelos dados pessoais adicionais altamente sensíveis que passarão a coletar e armazenar em razão da verificação etária exigida por essas leis.

Tratamento de dados pessoais sensíveis e biométricos

Ambas as versões do texto possuem dispositivos que visam tentar proteger dados pessoais no contexto da verificação etária. No texto antigo (arts. 9º e 19):

§ 2º Os dados coletados para a verificação de idade poderão ser utilizados unicamente para esta finalidade, vedado seu tratamento para qualquer outro propósito.

No texto novo (art. 13):

Art. 13. Os dados coletados para a verificação de idade de crianças e de adolescentes poderão ser utilizados unicamente para essa finalidade, vedado seu tratamento para qualquer outro propósito.

Na prática, a fiscalização da finalidade de uso de dados coletados é praticamente impossível de ser realizada. De posse dos dados pessoais, é muito provável que grande parte dessas empresas acabem utilizando os dados pessoais sensíveis coletados na verificação etária em outras finalidades, tais como marketing e publicidade, perfilamento comportamental e de saúde, comercialização para data brokers, entre outros usos proibidos, sem nenhum risco de serem detectados.

Mesmo que as empresas queiram respeitar a finalidade definida em lei, ainda há o risco bastante real e elevado de vazamento de dados pessoais sensíveis e biométricos, coletados em razão da verificação etária. Infelizmente, o risco de vazamentos de dados pessoais sensíveis tem se concretizado em inúmeras ocorrências nos últimos anos. Apenas para citar um exemplo especialmente gravoso, em 2021 os dados de 223,7 milhões de brasileiros foram expostos e vêm sendo comercializados por criminosos e utilizados em golpes que custam bilhões às vítimas e ao país.

Os alvos da proposta anterior

A proposta originalmente aprovada no Senado previa que a obrigação de verificação etária só se aplicaria obrigatoriamente aos sites pornográficos:

Art. 9º Os provedores de aplicações de internet que disponibilizarem conteúdo pornográfico deverão impedir o acesso e a criação de contas ou perfis por crianças e adolescentes no âmbito de seus serviços.

§ 1º Para dar efetividade ao disposto no caput deste artigo, deverão ser adotados mecanismos confiáveis de verificação de idade e identidade dos usuários.

Por outro lado, as redes sociais precisariam apenas fazer a verificação etária em caso de indícios de que as contas estivessem sendo operadas por crianças, como dispunha o §5º do art. 17:

§ 5º Os provedores de redes sociais poderão requerer dos responsáveis por contas com fundados indícios de operação por crianças que confirmem sua identificação, inclusive por meio da apresentação de documento de identidade válido, sendo os dados coletados utilizados exclusivamente para verificação de idade.

Embora fosse positivo o fato do alvo da proposta ser mais direcionado, o conceito de “redes sociais” era bastante amplo e poderia ser aplicado a a diversas outras aplicações que normalmente não são consideradas redes sociais, tais como pequenos fóruns de mensagens e redes descentralizadas de mensagens:

Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se:

(…)

IV – rede social: aplicação de internet cuja principal finalidade seja o compartilhamento e a disseminação, pelos usuários, de opiniões e informações, veiculadas por textos ou arquivos de imagens, sonoros ou audiovisuais, em uma única plataforma, por meio de contas conectadas ou acessíveis de forma articulada, permitida a conexão entre usuários;

Aplicar a mesma regra às grandes plataformas e a pequenos fóruns de mensagens seria quase uma garantia de que estes últimos, considerados últimos redutos da web aberta e alternativa a quem quer evitar as plataformas, teriam que fechar por não conseguirem cumprir as exigências.

Redes descentralizadas de mensagens, como Matrix e Mastodon, tampouco conseguiriam implementar as exigências da lei. Entre outros motivos, cada operador de um nó da rede decide que regras aplicar ao seu próprio nó, e não há como exigir que todos, dentre milhares de nós existentes no exterior e que não têm o Brasil como público pretendido, cumpram normas específicas brasileiras. Bloquear todos os nós, um por um, seria na prática inviável. Para entender o motivo, sugiro a leitura do texto “Mastodon diz não ‘ter os meios’ para cumprir leis de verificação etária”, no blog Techcrunch.

Havia, ainda, a obrigação de elaborar relatórios semestrais de prestação de contas. Esta obrigação, no entanto, se aplicaria somente aos “provedores de aplicações de internet que possuírem mais de 1.000.000 (um milhão) de usuários crianças e adolescentes registrados”. Esta parece ter sido a única preocupação da proposta em diferenciar as grandes plataformas dos pequenos sites.

Além desses alvos mais específicos, a proposta original trazia também diversas determinações que se aplicariam a “fornecedores de produtos ou serviços de tecnologia da informação direcionados ou que possam ser utilizados por crianças e adolescentes”. A expressão é bastante genérica, pois qualquer produto ou serviço é passível de ser utilizado, em tese, por uma criança ou adolescente, ainda que indevidamente ou sem a intenção do fornecedor. Na prática, essas disposições se aplicariam a todos os produtos ou serviços de tecnologia da informação.

Os novos alvos do projeto aprovado

Na versão final que foi aprovada, o alvo genérico a todos os produtos ou serviços se tornou um pouco menos geral com o uso da expressão “acesso provável”, mas ainda assim permaneceu bastante amplo. Há diversas obrigações estabelecidas no texto que repetem a expressão e a seguir está apenas um exemplo:

Art. 14. Os fornecedores de produtos ou serviços de tecnologia da informação direcionados a crianças e a adolescentes ou de acesso provável por eles deverão adotar medidas técnicas e organizacionais para garantir o recebimento das informações de idade de que trata o art. 12 desta Lei.

A definição de “acesso provável” está no parágrafo único do art. 1º. A hipótese de enquadramento mais provável parece ser o inciso II:

II – considerável facilidade ao acesso e utilização do produto ou serviço de tecnologia da informação por crianças e adolescentes;

Basta ser de fácil acesso e uso para se enquadrar. Por exemplo, um simples aplicativo de calculadora, por ser fácil de se usar e acessar por qualquer pessoa, teria o ônus de ter que implementar as medidas técnicas, mesmo não fazendo sentido em razão do seu conteúdo – não ter qualquer conteúdo inadequado para nenhuma faixa etária.

A Wikipédia também é de fácil acesso e uso, embora alguns verbetes mais densos ou técnicos sejam, pela natureza do assunto, de difícil compreensão até para adultos. A Wikipédia seria, então, um produto de “acesso provável”? Ela se sustenta apenas por meio de doações. Será que continuaria sendo sustentável, diante do aumento de custo, mantendo-se o mesmo montante de doações?

As redes sociais, com a mesma definição e os mesmos problemas do texto anterior, permaneceram como alvo. Assim como os sites com mais de um milhão de crianças e adolescentes. Todavia, deixaram de ser alvo os sites pornográficos e se tornaram novos alvos as lojas de aplicações e os sistemas operacionais:

Art. 12. Os provedores de lojas de aplicações de internet e de sistemas operacionais de terminais deverão:

I – tomar medidas proporcionais, auditáveis e tecnicamente seguras para aferir a idade ou a faixa etária dos usuários, observados os princípios previstos no art. 6º da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais);

Os novos alvos atingem uma camada muito mais basilar do uso moderno de tecnologias da informação. Na prática, torna impossível usar qualquer aplicação tecnológica sem antes passar por verificação etária. E, como vimos anteriormente, fazer isso de forma segura e sem coleta e tratamento de dados pessoais sensíveis é muito difícil. Além disso, não foi definido nenhum limite de tamanho dos provedores, tornando quase impossível que as alternativas pequenas e comunitárias às soluções das Big Tech se mantenham na legalidade, devido ao alto custo de implementar tais medidas.

A inclusão de última hora das “lojas de aplicações” e dos “sistemas operacionais” no projeto de lei surpreendeu muita gente. Existe algo parecido em outros países?

Precedentes internacionais

Vários países possuem algum tipo de legislação sobre design e conteúdo que leve em conta a adequação à idade. Mas a obrigação de verificar e confirmar a idade são poucos, como China, Reino Unido e Austrália.

Geralmente, como no Reino Unido, a restrição só se aplica a sites pornográficos ou de jogos de azar. A Austrália, este ano, começou também a banir completamente as redes sociais para menores de 16 anos, como a França fez no ano passado.

No entanto, leis que exigem verificação de idade das lojas de aplicativos são incomuns. Os estados de Utah e Texas, nos Estados Unidos, têm leis assim. Além disso, Cingapura e China também implementaram leis semelhantes muito recentemente (2024-2025).

Por outro lado, a obrigação de verificação etária direto no nível do sistema operacional é algo único, quase sem paralelo no mundo. O único caso com alguma semelhança é a política de nomes reais da China.

A seguir, examinaremos os possíveis impactos em alguns ecossistemas tecnológicos afetados pelos novos alvos da legislação: as lojas de aplicativos e os sistemas operacionais.

Prováveis impactos no Android

A Google tem sido, ao longo dos anos, em certa medida, favorável à possibilidade de uso do software livre nos dispositivos móveis. Ela disponibiliza, com licença livre, o Android Open Source Project (AOSP). Embora seja extremamente básico em funcionalidades, essa versão do Android pelo menos possibilita o surgimento e a manutenção de sistemas operacionais móveis livres baseados nele, como o GrapheneOS, LineageOS, CalyxOS, entre outros, que são compatíveis com os smartphones Android.

Grande parte desses sistemas operacionais livres baseados no Android não tem uma empresa por trás. Em vez disso, são projetos comunitários, descentralizados, sem financiamento e sem CNPJ, não teriam condições financeiras e organizacionais de implementar a verificação etária. Assim, a impossibilidade de cumprimento da nova exigência legal jogaria na ilegalidade quase todos eles.

Outro aspecto em que a Google merece crédito até o momento é por exercitar algum nível de contenção na coleta excessiva de dados, por manter a possibilidade de se usar o Android sem uma conta Google, embora quem faça essa escolha não consiga usar a sua loja de aplicativos. A obrigação imposta pela lei para que se faça a verificação etária no nível do sistema operacional pode ser o empurrão que faltava para que a Google torne essa identificação obrigatória. Na prática o Estado está a obrigar o cidadão a criar uma conta, mesmo que não queira, e aceitar os termos de serviço e políticas de privacidade de uma gigante estrangeira e toda a coleta de dados pessoais que isso enseja.

Hoje, quem usa o Android sem conta Google ainda tem a possibilidade de usar outra loja de aplicativos, como o F-Droid. É um projeto comunitário, conduzido por voluntários e que se mantém apenas por doações. Somente os aplicativos que são software livre podem ser admitidos nessa loja. Convido o leitor a ler o texto “A loja de apps para Android de um mundo ideal existe”, do blog chamado Manual do Usuário.

As dificuldades e os custos de implementação da verificação etária, tornada obrigatória às lojas de aplicativos, muito provavelmente vão inviabilizar a continuidade do F-Droid, pelo menos no que se refere ao seu uso legal no Brasil.

Prováveis impactos no Windows

A Microsoft tem sido muito criticada por ter tornado obrigatória, a partir do Windows 11, a conexão à internet e o uso de uma conta Microsoft para instalar e para usar o sistema operacional. Ele tem sido considerado o sistema com a pior privacidade em décadas pela quantidade de dados que coleta e que compartilha com terceiros. Apesar das críticas, a empresa dobra a aposta e insiste nessa nefasta prática.

A nova lei servirá de desculpa para que a gigante estrangeira mantenha e justifique esse comportamento, apesar de toda a repercussão negativa.

Prováveis impactos no Linux e em outros sistemas operacionais livres para computadores

Embora tenha ouvido 4 podcasts sobre esse projeto de lei no mês de agosto, somente um, o Dadocracia, sequer mencionou a existência de uma obrigação de verificação etária. Mesmo assim, minimizou o problema e não entrou no detalhe a quem em particular seria o alvo dessa obrigação. Por isso, posso dizer que a questão passou bem por baixo do radar da sociedade.

Só tomei conhecimento de que existia mesmo a obrigação e que ela se aplicaria a sistemas operacionais quando vi um print de uma postagem do August Resende, questionando a possibilidade de proibição do Linux em razão da lei. Foi então que me atentei para as discussões que estavam acontecendo no mundo do software livre e fui atrás de ler o texto aprovado para saber exatamente do que se trata a lei aprovada.

Como já discutido anteriormente, o texto aprovado parece claro no sentido de que a obrigação de fazer verificação etária se aplica, sim, aos sistemas operacionais, o que incluiria o Linux e suas distribuições derivadas, bem como outros sistemas operacionais livres para computadores, como o FreeBSD.

São poucas as exceções, como o Ubuntu e o Red Hat Enterprise Linux, em que o sistema operacional é bancado por uma empresa – nesses exemplos, Canonical e IBM (que comprou a Red Hat), respectivamente. A maior parte, por outro lado, é conduzida por comunidades descentralizadas, sem condições financeiras e organizacionais de implementar regras específicas para cada país, ainda mais algo complexo como a verificação etária. A impossibilidade de cumprimento da nova exigência legal jogaria na ilegalidade esses sistemas.

As consequências são difíceis de estimar. A Anatel ordenaria o bloqueio dos canais oficiais de distribuição? Tentaria localizar desenvolvedores individuais que contribuem ao projeto e que residam no Brasil para multá-los? Ou toleraria a ilegalidade de lojas de aplicativos e sistemas operacionais livres sem nada fazer, para evitar a repercussão negativa de penalizar algo que gera tanto valor para a sociedade como o software livre?

De qualquer forma, o simples fato de haver o risco e a ameaça de penalidade faz qualquer desenvolvedor pensar duas vezes antes de contribuir com qualquer sistema operacional livre.

Risco de compliance

O eventual não cumprimento da verificação etária do art. 12 é algo muito fácil de ser observado, pois normalmente ela se dá logo ao iniciar o uso da loja de aplicativos ou do sistema operacional.

Por outro lado, a salvaguarda quanto à finalidade existente no art. 13 é de quase impossível verificação. Tanto é que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados tem atuado apenas em pouquíssimos casos que vêm à tona em razão de vazamento de dados ou denúncia da imprensa com grande repercussão.

Sopesando ambas as disposições, o mais provável é que as empresas venham a cumprir a primeira, sem se preocupar em cumprir a segunda.

Como as Big Tech saem ganhando?

Sem dúvida as gigantes estrangeiras terão custos para implementar as novas exigências. Por outro lado, também terão vantagens, entre outras, a eliminação de concorrentes menores que não têm os mesmos recursos.

É como diz o escritor e ativista de tecnologia Cory Doctorow (que cunhou o termo enshittification, algo como “merdificação”, descrevendo o processo de piora gradativa dos serviços prestados pelas grandes plataformas), e eu reproduzo, parafraseando. O melhor resultado para as Big Tech não ter nenhuma regulação. O segundo melhor resultado para elas é ter uma regulação que elimine e impeça a concorrência.

A fim e a cabo, algumas gigantes estrangeiras saem ganhando sob os seguintes aspectos, diante das novas exigências da lei:

  • Microsoft:
    • justificativa para manter a obrigatoriedade da conta Microsoft e da conexão à internet em seus sistemas operacionais;
    • aumento da coleta de dados, ao ter informações adicionais sobre as pessoas usuárias;
    • redução da concorrência em sistemas operacionais (Linux e derivados, FreeBSD).
  • Google:
    • aumento no alcance da coleta de dados, chegando aos poucos usuários que ainda não usavam conta Google por terem preocupações com privacidade;
  • Meta e X:
    • redução da concorrência em aplicativos de mensagens (ex.: Matrix), redes sociais (ex.: Mastodon) e outros modelos de comunicação (ex.: fóruns).

Cabe observar que essas empresas não têm a mesma posição em relação à verificação de idade em lojas de aplicativos. Meta e X são a favor, enquanto Google e Apple se declaram contrárias à medida.

Muitas propostas legislativas são feitas pensando-se que as grandes plataformas e a internet são a mesma coisa – uma confusão que é, infelizmente, muito comum na sociedade, mas é especialmente danosa quando parte de legisladores. Essa lei é mais um exemplo disso, contribuindo para agravar e consolidar os monopólios das Big Tech, ao dificultar a existência e continuidade de algumas das alternativas existentes às grandes plataformas.

É importante lembrar que há, ainda, um setor em plena ascensão no mundo e que vem exercendo lobby em diversos países, pressionando os legisladores pela aprovação de novas leis de verificação de idade. É o grupo das empresas de verificação etária. Elas possuem até uma associação para defender seus interesses. Esse setor é, também, um grande beneficiado financeiro desse movimento.

Proteção insuficiente à infância e à adolescência

Para um projeto de lei que pretendia, ao menos nominalmente, proteger crianças e adolescentes na internet, é possível afirmar que ele falhou nesse objetivo em diversos usos da tecnologia que são frequentes na sociedade e causam grande dano a essas pessoas.

Por exemplo, o uso de inteligência artificial generativa para gerar deep fakes com fotos das pessoas em situações constrangedoras. Ou, ainda, chat bots com modelos de linguagem que incentivem ou estimulem comportamentos autodestrutivos.

Esses tipos de abusos não são abordados nem mesmo no PL 2.338/2023, aprovado pelo Senado em 2023 e remetido à Câmara dos Deputados, apelidado de “Marco Regulatório da IA”.

Mobilização pelo veto parcial

Com a nova aprovação no Senado, o texto segue para a sanção presidencial. Não há mais a possibilidade de modificar o texto para a inclusão de exceções para aplicações não comerciais ou explicitamente para o software livre. As únicas modificações possíveis nessa etapa são a possibilidade de vetos parciais pelo Presidente da República.

Diante da repercussão negativa que o art. 12 gerou em algumas comunidades de software livre no Brasil, resta a esperança de que estas se mobilizem, a fim de pleitear um veto parcial aos dispositivos que, em sua visão, prejudiquem o software livre. A batalha é difícil, pois a opinião pública, em geral, não sabe o que é e nem se importa com o software livre, e está mobilizada em favor da lei, mesmo sem ter lido os seus meandros ou conhecer os seus detalhes. Isso aumenta, infelizmente o custo político de um veto parcial.