Cory Doctorow: a DRM quebrou a sua promessa

imagem: Jose Fontano / Unsplash

Dia 12 de outubro, além de no Brasil ser o dia das crianças e dia de Nossa Senhora Aparecida, é também o dia internacional contra a DRM. DRM é um conjunto de práticas e tecnologias que visam restringir o que o consumidor pode fazer com os bens digitais que adquire, conforme o que for ditado pelos detentores dos direitos sobre esses bens.

Em alusão a essa data, trago aqui a tradução autorizada de um texto que o autor Cory Doctorow escreveu para a sua coluna na revista Locus, que também está disponível em uma leitura do próprio autor, em inglês, em formato de podcast. Segue o texto.

Cory Doctorow: a DRM quebrou a sua promessa

Quando os estados tinham estabelecido religiões e as todo-poderosas igrejas, o clero poderia impor muitas humilhações aos seus párocos ao meramente afirmar que era a “vontade de Deus”. A nossa religião moderna secular é a adoração dos mercados como sistemas autocorretores e autoaperfeiçoantes que meramente exigem que ajamos em nosso interesse próprio para produzir um resultado que nos beneficia a todos. Sempre que as corporações prosperam nos prejudicando, nos dizem para parar de reclamar, porque é uma obra do “desejo do mercado”.

Foi assim quando a revolução digital chegou: o sacerdócio dos negócios nos disse que não devemos ser tentados pela sua promessa de distribuição infinita de todo o conhecimento humano sem custos. Qualquer tecnologia que permita aos “consumidores” de bens de informação fazerem mais com os livros, filmes, jogos e música que eles compraram não seria uma dádiva, porque destruiria os mercados para a mídia, incluindo os mercados que nos tinham a comprar nossa música em um novo formato a cada dois anos, os mercados que exigiam que bibliotecas recomprassem os livros favoritos dos seus sócios quando eles estivessem gastos, e assim por diante.

A despeito do fato de que ninguém nunca foi a uma loja e pediu um livro que se desgastaria rápido ou um formato de música que estaria obsoleto em dois anos, nos disseram que as limitações do mundo físico eram, de fato, felizes acidentes da matéria virtuosa, cujas limitações permitiam todos os tipos de “inovações”, como te vender um álbum em vinil, depois em cartucho Stereo 8, depois em fita cassete, depois em CD.

Usar o digital para subverter esse ciclo de renovação – para permitir o acesso instantâneo e livre a toda a cultura por todos os humanos – era um pecado na doutrina da religião do mercado. Mas o sacerdócio tinha um uso ortodoxo e virtuoso para o digital: eles queriam usar ferramentas digitais para possibilitar novos mercados, mercados esses que nunca poderiam ter existido no mundo da matéria burra.

O problema dos mercados é que vender coisas é ineficiente. Existem tantas pessoas que precisam não da coisa, mas apenas um uso momentâneo da coisa: o direito de ler um livro hoje, mas não possui-lo para sempre; usar um fragmento de uma canção como toque de telefone, mas não colocá-la na sua biblioteca de músicas; tirar um clipe de vídeo de um filme para usar no seu projeto escolar, sem ter que comprar o filme.

O digital, o sacerdócio nos disse, poderia tornar todos esses mercados – e mais outros – uma realidade! Graças a uma tecnologia chamada “Digital Rights Management” (gestão digital de direitos), vendedores e compradores poderiam negociar um subconjunto de direitos e um pagamento reduzido para os mesmos. Da mesma maneira que o humilde financiamento habitacional poderia se desdobrar em um milhão de “produtos” que os investidores poderiam comprar na forma de complexos instrumentos financeiros, nós poderíamos transformar o livro unitário em mil sub-livros: o livro que você só pode ler às quartas-feiras, o livro que você só pode ler enquanto estiver em um avião, o livro que você só pode ler depois que o sol se põe.

Não foi isso que recebemos, é claro.

Hoje, quatro das cinco grandes editoras vendem todos os seus livros com DRM (a exceção é a Macmillan, cuja edição Tor de ficção científica e fantasia é livre de DRM). Esses livros digitais são como livros, exceto que eles são atrelados aos leitores aprovados pelo comerciante que os vendeu para você (Kindle, Nook, Kobo, etc.) e eles não podem ser doados ou revendidos e têm pouca ou nenhuma capacidade de serem emprestados. Em outras palavras, livros digitais são como livros, só que eles fazem menos.

Apesar do fato que eles fazem menos, eles não custam menos. Os livros digitais restritos vendidos pelos concorrentes do Tor – livros que não podem ser usados com o leitor de sua escolha, ou vendidos, ou emprestados, ou doados – custam exatamente o mesmo que os livros sem restrição do Tor.

Em outras palavras, nos disseram que precisaríamos rejeitar a promessa do digital sem restrições em favor do digital travado e, em troca, entraríamos em um mercado vibrante onde os vendedores ofereceriam exatamente os usos que precisássemos, por um preço que fosse reduzido para refletir o fato de que estaríamos recebendo um produto limitado. Recebemos o produto limitado, sim – apenas não o desconto.

A religião estabelecida dos mercados uma vez nos disse que deveríamos abandonar a ideia de possuir coisas, que isso era uma ideia ultrapassada do mundo dos átomos sujos. No mundo futurístico do digital, ninguém possuiria coisas, nós apenas as licenciaríamos e assim seríamos aliviados do terrível fardo da propriedade.

Eles estavam dizendo a verdade. Nós não possuímos mais as coisas. Neste verão, a Microsoft desativou a sua loja de livros digitais e, ao fazê-lo, desativou os seus servidores de DRM, tornando todos os livros que a empresa havia vendido inertes e ilegíveis. Para compensar por isto, a Microsoft enviou reembolsos aos consumidores que pôde encontrar, mas obviamente isso é um péssimo substituto aos livros em si. Quando eu era um vendedor de livros em Toronto, nada que acontecesse jamais resultaria em eu invadir a sua casa para tomar de volta os livros que eu havia vendido a você e, se eu o fizesse, o fato de eu deixar um reembolso para você não o compensaria pelo furto. Nem mesmo todos os livros que a Microsoft está confiscando estão mais disponíveis à venda e algumas das pessoas de cujos livros eles estão roubando fizeram extensas anotações que vão sumir como fumaça.

Além do mais, esta não é nem mesmo a primeira vez que uma livraria eletrônica tenha feito isso. O Walmart anunciou que estava desligando os seus livros digitais com DRM em 2008 (mas parou depois de uma ameaça do FTC (NT: Federal Trade Commission, órgão de defesa do consumidor nos E.E.U.U.)). Esta não é nem mesmo a primeira vez que a Microsoft fez isso: em 2004, a Microsoft criou uma linha de tocadores de música amarrada à sua loja de música que se chamava (não estou inventando isso) “Plays for Sure” (Toca com Certeza). Em 2008, ela desligou os servidores de DRM e os títulos do Play for Sure que os seus clientes haviam comprado se tornaram títulos do Nunca Mais Tocarão de Novo.

Desistimos de possuir coisas – a propriedade agora é de competência exclusiva de organismos transumanos colônias imortais chamados corporações – e nos prometeram flexibilidade e pechinchas. Nós recebemos manipulação de preços e fragilidade.

Veja os livros didáticos: o preço de textos universitários tem aumentado em média 12% ao ano, com as editoras de livros didáticos extraindo US$ 3,5 bi/ano dos estudantes americanos. Os livros didáticos vêm com recursos online obrigatórios e logins para estes que precisam ser comprados novamente a cada ano, então mesmo que você vendesse os seus livros didáticos velhos, o garoto que os comprasse de você ainda assim não teria que comprar um login online. Aos professores são oferecidas propinas substanciais para selecionar os textos mais caros e ferramentas digitais de alto desempenho para tornar fácil às editoras fazer alterações mínimas a cada ano ou dois para que as “edições” anteriores do texto não estejam mais sincronizadas com os planos de aulas dos professores, tornando os livros usados efetivamente sem valor.

Ou bibliotecas: as bibliotecas frequentemente pagam custos mais altos para livros digitais em comparação com os livros impressos e, além disso, as editoras impõem condições ridículas nos livros digitais que eles vendem às bibliotecas, como fazê-los se autodestruírem depois de alguns empréstimos (Harpercollins) ou simplesmente não disponibilizar livros digitais a bibliotecas até que a capa dura não seja mais um lançamento (Tor). Novamente: como livros impressos, só que pior. E mais caros.

Mas a DRM não trouxe os livros digitais para as bibliotecas, para começar? Bem, é verdade que as editoras estavam relutantes a vender para bibliotecas até que as bibliotecas começaram a usar o Overdrive e outros sistemas de DRM (pagar por esses consome com os orçamentos das bibliotecas para coleções, o que significa menos dinheiro para as editoras e para os autores), mas não há razão para pensar que descartar a DRM seria um empecilho hoje. Afinal de contas, fazem cinco anos que as bibliotecas deixaram de usar DRM em audiolivros eletrônicos – os materiais mais caros que bibliotecas circulam – e as editoras de audiolivros ainda estão vendendo audiolivros às bibliotecas.

Até para os serviços de streaming – virtualmente sinônimos de DRM – não há razão para pensar que a DRM é o motivo pelo qual esses serviços têm clientes. As pessoas não assinam o Spotify ou a Netflix para receber seus cinco (ou cinquenta, ou quinhentos) títulos favoritos, que eles planejam baixar no primeiro mês e então abandonar o serviço. As pessoas assinam os serviços de streaming pela conveniência e recomendações e busca, tudo isso possível com ou sem DRM.

Os serviços de streaming dependem, sim, de DRM: a DRM é como o Spotify impede que terceiros façam tocadores que pulem os comerciais e é a maneira da Netflix e da Amazon Prime impedirem você de salvar os seus filmes de natal para o seu disco rígido em julho para que você possa assisti-los gratuitamente em dezembro, quando eles se tornam filmes pay-per-view.

Há um nome para sociedades em que uma pequena elite detém a propriedade e todo o resto das pessoas aluga essa propriedade delas: chama-se feudalismo. A DRM nunca entregou um mundo de escolhas flexíveis para o consumidor, mas nunca era para ter feito isso. Em vez disso, depois de vinte anos, a DRM revela-se exatamente como nós temíamos: uma jogada oligárquica para por fim à propriedade de bens pelas pessoas, que se tornam inquilinos nos campos das companhias tecnológicas de da mídia gananciosas e confiscatórias, cuja inventividade não é dedicada a novas propostas de mercado maravilhosas, e sim, em vez disso, a novas maneiras de nos coagir a gastar mais por menos.

Sobre o autor: Cory Doctorow é o autor de livros como Walkaway, Radicalized, Little Brother (este disponível em português, com o título “Pequeno Irmão”, pela editora Galera Record) e Information Doesn’t Want to Be Free, além de muitos outros. Ele é coproprietário do site Boing Boing, consultor especial da Electronic Frontier Foundation, professor visitante de ciência da computação na Open University e Research Affiliate no MIT Media Lab.

Traduzido por: Augusto Herrmann